No princípio deste século, mais precisamente em 1906, Alcides Godoy, cientista do Instituto Oswaldo Cruz, descobriu a primeira vacina veterinária do país para profilaxia de doenças infectocontagiosas: a vacina contra o carbúnculo sintomático, mais conhecido como Peste da Manqueira. Em 1918 em conjunto com outro pesquisador da Fiocruz, Astrogildo Machado, Godoy descobriu a vacina anticarbunculosa, contra o carbúnculo hemático, também conhecida como carbúnculo verdadeiro (ou antraz). A primeira vacina veterinária contra o antraz foi desenvolvida por Pasteur em 1881. Tem havido confusão entre o Carbunculo Sintomático (Manqueira, Mal do Ano) e o Carbuculo Hemático ou verdadeiro (Carbunculo, Antraz). A primeira vacina foi a “Vacina contra a Manqueira” ou seja contra o Carbunculo Sintomático. A Vacina contra o Antraz, “Vacina Anticarbunculo, Manguinhos”, foi desenvolvida cerca de 10 anos depois por Alcides Godoy e Astrogildo Machado que então trabalhava no Laboratório de Godoy no Instituto Oswaldo Cruz. As duas vacinas foram patenteadas a primeira por A.Godoy em 1908 e a segunda por A.Godoy e A.Machado em 1918 registro no 9981. A Vacina contra a Manqueira teve a sua patente renovada ao fim de 15 anos por mais 15. Em face dos problemas com o Antraz nos Estados Unidos muitos tem confundido os dois tipos de vacinas. A vacina anticarbuncolosa manguinhos, de invento e propriedade de Alcides Godoy e Astrogildo Machado, foi por eles cedida ao Instituto, sob a condição de ser a respectiva renda aplicada na vida científica da Instituição. Alcides Godoy e Astrogildo Machado continuaram a trabalhar no IOC até falecerem respectivamente em 30 de janeiro de 1950 e 19 de janeiro de 1945.
A contratação de pessoal, como autorizava o Regulamento de março de 1908, começou com as de Lutz, Gaspar Viana e Astrogildo Machado que seriam absorvidos graças à famosa “verba da manqueira”. Astrogildo Machado começou no Instituto trabalhando em parasitologia, tendo publicado trabalho nas Memorias já em 1911. Aragão dá outro período ; “Entre 1910 a 1912 chegaram alguns novos discípulos do Instituto. Foram Astrogildo Machado, Leocádio Chaves e Eurico Villela destacados para trabalharem com Chagas em Lassance”. Na Biblioteca Virtual Carlos Chagas encontramos mais informações sobre Machado e o inicio do trabalho de Astrogildo com Godoy: “Astrogildo Machado, ainda estudante passa a colaborar com Carlos Chagas como seu auxiliar nos estudos sobre a tripanossomíase americana desenvolvidos em Lassance. No início de sua carreira científica, dedica-se a trabalhos sobre citologia e a evolução de protozoários, especialmente os tripanossomos. A partir daí, suas pesquisas voltam-se para as áreas da química e da imunologia, gerando importantes aperfeiçoamentos na técnica de preparo de soros, como o antidisentérico. Em colaboração com Alcides Godoy, também pesquisador de Manguinhos, desenvolve em 1918 uma vacina contra o carbúnculo hemático, doença que atacava o rebanho bovino brasileiro e sul-americano. Patenteada, a vacina anticarbunculosa (antrax) passa a integrar o rol dos produtos biológicos fabricados e comercializados pelo Instituto Oswaldo Cruz”
“A verdadeira vacinação contra o carbúnculo hemático, pode-se dizer, começou com Pasteur, por meio da atenuação do bacilus anthracis pelo calor.” Outros processos de atenuação do vírus ora pela ação do oxigênio sobre pressão, ora pela de certos antissépticos em nada adiantaram o método de vacinação. O processo Pasteur consta de duas vacinas uma fraca e outra forte, injetáveis nos animais na dose de 1/4 e 1/8 CC, com intervalo de 10 a 12 dias da primeira para a segunda inoculação. Ambas (fraca e forte) são constituídas por sementeiras em caldos simples de amostras atenuadas de bacilus anthracis. A atenuação se faz pela ação do calor: semeia-se o bacilo ainda não esporulado em caldo que permanece na estufa a 42, 43C durante muitos dias. geralmente depois da sementeira a inoculação não mata mais o coelho e mata ainda a cobaia e camundongo, o bacilo com tal grau de virulência é replicado para outros meios a 35-37C e conservado para preparar a vacina forte ou segunda vacina. Com vegetação de 18 a 22 dias a 42-43C o bacilo só é virulento para o camundongo e não mais para a cobaia; esta raça com tal grau de atenuação, serve para prepara a primeira vacina, ou vacina fraca. O bacilo do carbúnculo pode conservar definitivamente seus graus de atenuação. Em muitos países foi modificado o processo de Pasteur preparando-se uma vacina aplicável em uma só injeção. Tais vacinas são obtidas por meio de sementeiras em caldo simples de raça de bacilus anthracis, cuja atenuação é intermediária entre a primeira e a segunda vacina de Pasteur. No Instituo Oswaldo Cruz desta capital prepara-se uma vacina única. No Chile, República Argentina, Uruguai, Estados Unidos, etc, também se preparam vacinas únicas. Nos países onde está vulgarizada a prática de vacinação anticarbunculosa é muito sabido que a vacina única determina nos animais imunidade de duração muito mais curta que a conferida pela dupla vacinação. O bacilo anthracis é aeróbico e vegeta bem nos meios usuais de cultura, tanto líquidos como sólidos: nos primeiros a formação de esporos é muito pequena, e nos segundos é abundante, desde que a temperatura seja de 16 a 41C.
Seja forma vegetativa do bacilo tem pouca resistência aos diversos agentes físicos, químicos e ao tempo, o esporo oferece ao contrário, grande resistência e permanece vivo por tempo extremamente longo. O poder imunizante nas vacinas anticarbunculosas, únicas ou duplas, preparadas por sementeiras em meios líquidos é conferido pelo conjunto dos poucos esporos existentes e das formas vegetativas vivas, principalmente por estas últimas. Os bacilos mortos não determinam nenhum grau de imunidade praticamente aproveitável. Estas vacinas tem graves problemas: 1) além de requererem duas inoculações para que a imunidade se estabeleça, esta só é solida 12 a 15 dias depois da segunda inoculação. Quanto a vacina única, a imunidade leva o mesmo tempo para se estabelecer e a sua duração é muito menor que no primeiro caso, 2) falta de dosagem, de modo que umas vacinas são muito ativas e outras não, 3)conservação de suas propriedades vacinantes por espaço de tempo muito curto de 6 a 40 dias e excepcionalmente a três meses, isto em virtude da morte das formas vegetativas do bacilo que são o fator principal determinante da imunidade.
Para remover estes dois últimos inconvenientes, falta de dosagem e curta duração das propriedades vacinantes, Cienkowsky e Lango na Rússia, Destro na Hungria, Nitta no Japão e muitos outros nos Estados Unidos, preparam uma vacina constituída de esporos perfeitamente dosada e de longa conservação. Para isso eles semeiam as duas raças do bacilus anthracis que constituem a primeira e a segunda vacina de Pasteur simples e após abundante formação de esporos emulsionam separadamente estas culturas em água glicerinada a 33%, aquecem 20 a 30 minutos a 60C para matar as formas vegetativas, dosam os esporos e depois procedem a diluições convenientes. Esta vacina esporo é usada do mesmo modo que a vacina Pasteur, isto é, inocula-se o animal com a primeira vacina e 10 a 12 dias depois com a segunda. O tempo para o aparecimento da imunidade é também de 12 a 15 dias.
Desde muito tempo temos realizado pesquisas sobre a imunidade no carbúnculo bacteriano e chegamos a observações originais que nos permitem a preparação de uma vacina dotada das mesmas propriedades das vacinas conhecida presentemente tendo sobre elas a grande e extraordinária vantagem de além de ser de aplicação única, determinar precocemente a imunidade que, aparecendo do terceiro ao sexto dia, permanece no mínimo por um ano. Podemos resumir nossas observações originais nos seguintes parágrafos: 1) A injeção de uma mistura em proporções convenientes, de esporos obtidos de raças cujos graus de atenuação sejam diferentes entre si, determina a imunidade muito mais precocemente do que determinaria uma injeção só dos esporos da raça menos atenuada que entrou na mistura. Exemplificando temos:
a) a injeção de uma mistura de esporos das raças A-B-C-D-E desigualmente atenuadas, determina a imunidade do terceiro ao sexto dia; b) a injeção de esporos só da raça E (menos atenuada) determina a imunidade mais tardiamente, 2) Quando se injeta em carneiros (provavelmente também em outros animais) a mistura das duas doses mortais mínimas de vírus carbunculoso de esporos em graus diversos de atenuação, geralmente a morte tem lugar dois a três dias depois dos testemunhos, inoculados somente com as duas doses do vírus., 3) Se, a uma quantidade de esporos de raça cuja atenuação, não muito acentuada, possa ainda determinar a morte em carneiros, juntarmos convenientemente, uma mistura de outros esporos mais atenuados e em graus diversos entre si, observamos que, em vez de morte, os animais adquirem rapidamente uma imunidade extraordinariamente sólida, Exemplificando temos: a) injeção de esporos de raça H – determina a morte em 45 a 50 % dos carneiros, b) injeção de esporos de raça H, mais uma mistura de esporos diversamente atenuados das raças A-B-C-D-E determina rapidamente uma sólida imunidade, 4) Dentro de curtos limites e quanto maior for a quantidade injetada da mistura de esporos atenuados, tanto mais rápido será o aparecimento da imunidade.
Do que fica exposto sobre as nossas observações pessoais verificamos que os esporos mais atenuados injetados de mistura com outros menos atenuados preparam e protegem rapidamente o animal contra a ação destes últimos, explicando-se o aparecimento tão rápido da imunidade pelo grande encurtamento da fase negativa da imunização determinado provavelmente pela desigualdade de virulência de esporos. Verificamos também a possibilidade de determinar imunidade excepcionalmente sólida injetando quantidades de esporos muito maiores do que as necessárias e isto sem receio de qualquer reação prejudicial porque os esporos menos virulentos da mistura protegem contra a ação mórbida dos mais virulentos. Baseados nestas novas aquisições sobre a imunidade no carbúnculo bacteriano chegamos a obtenção de uma nova vacina anticarbunculosa que denominamos vacina anticarbunculosa Manguinhos, aplicável em uma só inoculação e dotada de grande poder imunizante, sendo além disso de longa conservação. Por se tratar de um elemento profilático eficaz e inteiramente novo é que requeremos o privilégio.
A técnica de preparação da vacina é a seguinte: a) sementeiras em meios sólidos de cultura a 35-37C durante alguns dias, de algumas amostras de bacillus anthracis convenientemente atenuadas em graus diversos entre si, b) depois de vegetação com abundante formação de esporos, estas sementeiras são emulsionadas em soluções conservadoras apropriadas, aquecidas a 60C meia hora, e misturadas umas às outras em proporções convenientes, tendo sido feita previamente a dosagem dos esporos. Chamamos soluções conservadoras apropriadas aquelas que não sendo prejudiciais à vitalidade do esporo, não permitem todavia a sua vegetação e multiplicação. c) as misturas dessas emulsões de esporos são distribuídas em ampolas constituindo a vacina anticarbunculosa Manguinhos.
É empregada em uma só injeção na dose de 1/2 cc para ovelhas e bezerros e 1cc para grandes animais adultos. Sua conservação é no mínimo de 15 meses. Antes de aberta a ampola deve ser fortemente agitada para ficar em suspensão aos esporos. A dose que aconselhamos como vacinante é de fato 10 vezes superior a necessária para determinar a proteção dos animais. Assim procedendo, visto não haver o menor perigo, fazemos com que a imunidade dure um ano pelo menos e apareça muito precocemente do terceiro ao sexto dia após a injeção. Com uma só inoculação desta vacina conseguimos imunizar 50 % dos coelhos que resistiram, depois de sete dias duas doses mortais do vírus. Este fato é de grande importância porque mostra como estão bem equilibradas entre si as proporções dos esporos dos diferentes graus de atenuação que contem a vacina, pois é muito sabido que para se imunizar as cobaias e coelhos, além da grande dificuldade existente é indispensável partir da injeção de raças avirulentas, depois passar de muito atenuadas e em seguida às menos atenuadas. Só depois de muitas injeções assim conduzidas é que se consegue a imunidade desses animais.
Para a cobaia nossa vacina determina a morte, visto conter muitos esporos de raça fortemente virulenta para ela. Não precisamos encarecer as extraordinárias vantagens de nossa vacina sobre as existentes. No decorrer deste memorial notamos suas diferenças evidentes. Acentuamos ainda uma vez que a vacina anticarbuculosa Manguinhos, distingue-se das esporo vacinas de Cientowsky, Lange, detre, Nitta, etc porque: 1) é empregada em uma só inoculação em qualquer que seja o animal, 2) é preparada pela mistura conveniente de esporos procedentes de raças de bacilus anthracia, cujos graus de atenuação são diversos entre si, 3) assim preparada, a inoculação de grandes doses da vacina em animais de extrema sensibilidade como as ovelhas, não determina nenhuma manifestação mórbida que poderia determinar a inoculação dos esporos menos atenuados de uma só das raças nela contida, 4) sendo a dose indicada para a vacinação muito superior à que de fato é necessária para a proteção do animal, a imunidade se estabelece muito precocemente (do terceiro ao sexto dia) e tão sólida que os animais vacinados resistem na totalidade das provas a inoculação de 40 doses mortais de vírus. Em resumo reivindicamos como ponto constitutivo da invenção um processo de preparação e emprego de uma nova vacina contra o carbúnculo bacteriano, denominada vacina anticarbunculosa Manguinhos, para ser aplicada em uma só inoculação como preventivo contra essa moléstia e consistindo o processo na utilização do poder imunizante dos esporos desigualmente atenuados obtidos pelas culturas outros meios sólidos do bacilus anthracis atenuado e esporulado, em emulsões em líquidos conservadores apropriados”.
Fonte:
http://www4.prossiga.br/chagas/sobrech/sec/eh-584.PDF
http://www.fiocruz.br/ccs/historia/extra_antraz.htm
acesso em dezembro de 2001
Benchimol e Teixeira, “Cobras, Lagartos & Outros Bichos”
Aragão, H.B de – “Noticia Histórica Sobre a Fundação do Instituto Oswaldo Cruz” – separata das Memórias do Instituto Oswaldo Cruz tomo 48 1950 p.40
Jaime Benchimol, “Origens e evolução do Instituto Oswaldo Cruz” http://www4.prossiga.br/chagas/sobrech/sec/eh-584-PDF
http://www4.prossiga.br/chagas/traj/links/textos/eguerreiro.html
acesso em outubro de 2004
Agradeço a Oswaldo Tarcisio Godoy (oswaldogodoy@terra.com.br), filho do inventor Alcides Godoy, pelo envio de informações em setembro de 2004 para composição desta página