Medicina

Válvula de Dura Mater

Em 1968, quando fizeram o primeiro transplante de coração da América Latina, Euryclides de Jesus Zerbini (1912-1993) e sua equipe de cirurgiões conseguiram o reconhecimento internacional. No ano seguinte, estavam entre os primeiros do mundo a fazer a revascularização imediata do miocárdio em um caso de insuficiência coronária aguda. Desde então, Zerbini empreendeu mais de 5 mil cirurgias que comprovaram a precisão dessa técnica. De sua biografia médica constam mais de 450 contribuições técnicas e científicas de repercussão mundial. Entre as principais estão as que se referem ao tratamento cirúrgico da tetralogia de Fallot e à substituição das válvulas cardíacas por próteses mecânicas e biopróteses, com ênfase para as válvulas de dura-máter. Essa extraordinária carreira acadêmica tem seu ponto culminante na criação do InCor em 1975, a realização de um antigo sonho de Zerbini.

 

O cardiologista nasceu prematuro, de sete meses, a 7 de maio de 1912, em Guaratinguetá. “Parecia um ratinho. Disseram que ele não ia sobreviver”, conta Eunice Zerbini, 95 anos, irmã do médico. O pai, imigrante italiano apaixonado pela cultura clássica, batizou o filho caçula de Euryclides – os outros se chamavam Eurídice, Eurípides e Euryale. O jeito linha-dura de seu Eugênio fazia Zerbini devorar os livros. Mas terminou o colégio sem descobrir a vocação. “Você vai ser médico”, sentenciou o pai. No início da faculdade, assistiu a uma operação sanguinolenta e pensou em desistir. Até que estourou a Revolução Constitucionalista de 1932 e ele se apresentou como soldado. “No front de batalha, ouvi falar sobre um médico que fazia um magnífico trabalho atendendo os feridos”, explicou certa vez. “Fui conhecê-lo e tomei gosto pela cirurgia.” Ainda bem.

Quando se começou a cogitar a possibilidade de serem realizadas operações de transplante de coração em seres humanos – não mais em termos filosóficos, mas de forma concreta, a partir dos trabalhos experimentais do cirurgião norte-americano Norman Shumway – era crença geral que, se alguém no Brasil viesse a executar tal cirurgia, esse alguém seria Zerbini. Embora houvesse outros grupos atuando nessa área pioneira, ele e sua equipe tinham “direitos adquiridos” para fazê-lo, quando chegasse a hora. Isso começou a acontecer na noite de 25 de maio de 1968, e só terminou na manhã do dia seguinte, no momento em que o coração do alagoano Luís Ferreira de Barros começou a bater compassadamente no peito do peão “João Boiadeiro”. O primeiro transplante brasileiro teve uma característica diferente de todos os 16 que o antecederam. Contrariando a técnica adotada por Shumway e Barnard, o coração de Luís/João não foi resfriado durante a transferência de um corpo para o outro. Os auxiliares de Zerbini preferiram mantê-lo em temperatura normal, irrigado pela máquina de perfusão, a fim de proteger melhor o metabolismo cardíaco.

O começo da década de 70 assinala mais uma notável contribuição do grupo de Zerbini no campo das próteses cardíacas: a válvula de dura-máter que, ao longo de quase dez anos, representaria uma revolução com repercussão mundial. As válvulas artificiais para cirurgias cardíacas eram formadas de uma estrutura em forma de uma pequena coroa de aço inoxidável. Esta estrutura era recoberta por um tecido de “dacron”, uma espécie de veludo de um material compatível com o tecido humano. Após esta fase, em que eram “bordadas” com o recobrimento da estrutura, esta era encaminhada para os médicos, que dentro do Centro Cirúrgico completavam as válvulas com outros materiais. “““ “““ As primeiras válvulas “biológicas” desenvolvidas no Hospital das Clínicas de São Paulo e adaptadas por Domingo Braile e pelo prof. Zerbini, eram recobertas de” dura-máter”, uma película que recobre o cérebro dos humanos. Para obter tal material Domingo precisava de autorização das famílias de defuntos recentes ou de abandonados que a polícia pelo departamento de patologia autorizava. Nestes casos a dura-máter era retirada de cadáveres no cemitério.

Ainda no final dos anos 60 e início dos anos 70, as degenerações e roturas observadas nos home enxertos deram ensejo a proposições do uso de tecidos biológicos, eventualmente mais resistentes, que pudessem servir para a feitura de novos substitutos valvares. Surgiram então as válvulas de tecidos biológicos humanos ou de animais, nas quais um anel metálico ou de plástico flexível recoberto por tecido de “Teflon” ou “Dacron” suporta três folhetos, semelhantes aos folhetos aórticos normais, feitos com fragmentos de tecidos autógenos, homólogos ou heterólogos, a fáscia-lata, a dura-máter e o pericárdio humano e bovino. A válvula de dura-máter homóloga, esterilizada e conservada em glicerol, foi proposta por Zerbini e Puig em 1971 e por eles usada para substituições mitrais e aórticas durante diversos anos. Esta válvula, resistente, de baixa trombogenicidade e antigenicidade mostrou-se durável ao longo de 10 anos, quando seu índice de rotura não excedia a 2,5%. Tanto as válvulas de fáscia-lata quanto às de dura-máter, embora adequadas às trocas valvares, tal quais os homo-enxertos conservados, tiveram sua aceitação limitada em decorrência da dificuldade de obtenção dos tecidos biológicos e da dificuldade de suas montagens artesanais.

No início da década de 70, Puig, Verginelli e Zerbini desenvolveram uma válvula confeccionada com tecido homólogo, a dura mater. humana, tratada pelo glicerol. Essa prótese foi largamente empregada no mundo, tendo representado um marco na evolução das próteses biológicas, principalmente no Brasil, onde estimulou muitos cirurgiões a se interessarem pelo assunto, desenvolvendo suas próprias próteses biológicas, colocando-o no mesmo nível dos tradicionais países exportados de tecnologia. As próteses de dura mater. têm agora 18 anos de seguimento com muitas delas ainda funcionando. As dificuldades para conseguir-se dura mater. em condições viáveis logo após a morte, a falta de padronização do processo de conservação e principalmente a confecção em forma artesanal, sem os rigores do controle de qualidade, levaram as válvulas de dura mater. a apresentar um nível de complicações acima dos aceitáveis, tendo seu uso sido abandonado. Entretanto, é preciso reconhecer que as próteses de dura mater. abriram o campo do implante e da pesquisa das válvulas biológicas no Brasil.

Fonte: http://www.zerbini.org.br/hpfz1.htm

http://www.fundacaobunge.org.br/fundacaobunge/galeria/areas.asp?1

http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/ciencia/ciencia8.htm

http://www.braile.com.br/circard/cecilia.htm

http://www.braile.com.br/publicacoes/publicacoes/tese%20dr.%20braile.pdf

http://publicacoes.cardiol.br/caminhos/013/default.asp

Acesso em agosto de 2002

http://www.cardiol.br/conheca/caminhos/05/

http://www.sosdoutor.com.br/doutorcoracao/historia1_ev.asp

Acesso em outubro de 2002