Resíduos agrícolas como o bagaço da cana-de-açúcar e as palhas de arroz, trigo, soja e milho, que geralmente sobram nas plantações e vão para o lixo, agora têm um destino mais nobre. Já é possível transformá-los em etanol (álcool combustível) a partir de uma nova bactéria desenvolvida pela engenharia genética. Usando o bagaço, matéria-prima abundante no Brasil, para a produção de combustível, as usinas podem aumentar sua produtividade em até 15%.
A descoberta é fruto de uma longa e importante pesquisa realizada pelo cientista brasileiro Flávio Alterthum, juntamente com dois cientistas norte-americanos, Lonnie O. Ingram e Tyrrell Conway, na Universidade da Flórida. Os três pesquisadores conseguiram, em laboratório, o que faltava para concretizar a experiência: um microorganismo que pudesse agir sobre outros açúcares diferentes da sacarose (xilose, arabinose, galactose, lactose) os quais a levedura (usada no método tradicional) não transforma em etanol.
A pesquisa “Produção de Etanol a partir de Hidrolisado de Bagaço da Cana-de-Açúcar Empregando Escherichia coli Recombinante” começou há 10 anos, mas só agora chega ao ponto crucial: vai ser testada em grande escala. Há dois anos, a empresa Bionol International está montando nos Estados Unidos, no estado da Louisianna, uma usina-piloto para finalmente desenvolver o etanol a partir do bagaço de cana. Apesar das inúmeras tentativas de Flávio Alterthum, no Brasil, nenhuma usina ou usineiro demonstrou interesse em bancar a promissora experiência.
“A idéia inicial era criar uma bactéria capaz de transformar outros tipos de açúcar abundantes na natureza, especialmente em resíduos agrícolas que normalmente são jogados fora, e produzir um combustível alternativo à gasolina”, conta Alterthum, professor titular (aposentado) do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e da Faculdade de Medicina de Jundiaí (Microbiologia). Ele é também professor visitante da Universidade da Flórida.
O projeto para desenvolver a nova bactéria tornou-se um dos trabalhos de pós-doutoramento do professor, realizado entre 1987 e 1989. Para o tão sonhado “casamento genético”, que aconteceria algum tempo depois, foram escolhidos dois microorganismos muito diferentes entre si: a bactéria Zymomonas mobilis, capaz de produzir álcool com muita eficiência, mas utilizando poucos tipos de açúcares, e a Escherichia coli, que não produz o etanol, mas é capaz de utilizar diversos açúcares. A primeira é encontrada no mel e a segunda vive no intestino humano.
Flávio Alterthum foi o responsável pela transferência da informação genética da Z. mobilis que faltava na E. coli e pela observação de como essa modificação se expressava na nova bactéria. Antes, porém, os genes de Zymomonas foram clonados e seqüenciados pelos pesquisadores americanos. A bem-sucedida experiência foi patenteada nos Estados Unidos com o número 5.000.000, em 19 de março de 1991. Números redondos como este são concedidos apenas às grandes descobertas, segundo o professor. A patente equivalente PI 9205782-9 depositada no Brasil via PCT em março de 1992, tendo o pedido americano como prioridade, foi indeferida pelo INPI porque a lei de propriedade industrial vetava a patenteabilidade de produtos químicos e microorganismos. Convidado em 1991 a receber as honras pela nova patente em cerimônia realizada em Washington , Flávio Althertum não conseguiu dinheiro para financiar a viagem e a estadia “Eles me convidaram para o Oscar da Ciência americana e eu não tinha dinheiro para pagar a passagem”.
O grupo norte-americano Quadrex comprou por US$100 mil (Revista Isto É) os direitos de comercialização do microorganismo, repassando à sua subsidiária, a Bioenergy International, a tarefa de testar e instalar fábricas com base na nova tecnologia. A Bioenergy quer produzir um combustível menos poluente que a gasolina e concedeu licenças para a produção de etanol a partir de resíduos orgânicos em 40 países. mas o projeto é caro, e em tempos de petróleo barato, acabou sendo deixado de lado. O diretor técnico do grupo Construcap, Roberto Capobianco, passou um ano nos EUA para negociar com a Bioenergy a implantaçào das técnicas de produção de álcool geradas pela bactéria modificada. As conversas conduziram à implantaçào da filial brasileira da Bioenergy e da Biocap, uma joint venture entre a empresa norte-americana e a Construcap, montada para comercializar os novos processos industriais no Brasil.
Ele explica que durante a pesquisa foi utilizada uma técnica usual de transformação, em que a bactéria é cultivada até que aceite o material genético de outro microorganismo. Mas o trabalho não parou por aí. Foi preciso um longo e paciente acompanhamento para verificar se o material genético tinha sido realmente incorporado, se os genes se expressavam de maneira eficiente no novo organismo, se a informação perdurava ao longo das multiplicações celulares e, por fim, se o produto formado não se alterava. Tamanha dedicação valeu a pena. A Escherichia coli depois de modificada, ou recombinada, demonstrou sua eficiência: com 120 gramas de glicose ou lactose por litro e meio de cultura, foram obtidas cerca de 56 gramas de álcool. Os resultados deste acompanhamento foram publicados, em 1989, na revista Applied and Environmental Microbiology.
O primeiro passo, neste método, é transformar o bagaço em hidrolisado (líquido). Depois, este líquido é neutralizado e tratado para eliminar as substâncias tóxicas. Por fim, adiciona-se a bactéria recombinante e, após cerca de 40 horas, faz-se a destilação: e está pronto o etanol. “A grande vantagem deste processo é utilizar uma matéria-prima que é resíduo, propiciando uma suplementação à produção de álcool de até 15%”, destaca o pesquisador. Os resultados desta experiência vêm reforçar a importância do etanol como combustível, apesar do desestímulo ao Proálcool e da drástica redução da fabricação de veículos movidos exclusivamente a etanol no Brasil.
Flavio Alterthum é farmaceutico bioquímico, formado pela Faculdade de Faculdade de Farmácia e Bioquímica da Universidade de São Paulo (1964) e doutorado em Farmácia (Quimica Tecnologica Aplicada aos Alimentos) pela Universidade de São Paulo (1969). Professor Livre Docente do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da USP (Bioquimica dos microrganismos), 1975. Professor Associado do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciencias Biomédicas da USP, 1986. Professor Titular do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, 1990. Aposentado da USP mas atua como Professor Visitante e desde 1995 é professor Titular de Microbiologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí.
Fonte:
http://www.fapesp.br/energia.htm
acesso em janeiro de 2002
http://rgp.ufl.edu/otl/ethanol.html
acesso em setembro de 2002
Revista Isto É, de 25.10.1995 página 62
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