Em 1998, a Volkswagen desenvolveu um Gol bicombustível para apresentá-lo em feiras internacionais. Parecia uma ótima idéia, mas ela permaneceu engavetada por cinco anos. “Havia um trauma dos consumidores com relação ao carro a álcool e não sabíamos como seriam tributados os bicombustíveis”, diz Paulo Sérgio Kakinoff, diretor de marketing e vendas da Volkswagen. Aos poucos, essas questões foram se resolvendo. Primeiro, o governo definiu que os bicombustíveis pagariam alíquota de IPI mais baixa, com os mesmos incentivos dos veículos a álcool. Isso permitiu que a fábrica conseguisse colocar no mercado em 2003 o Gol Total Flex ao mesmo preço do modelo comum, o que acabou quebrando as resistências ao novo produto. A inovação mudou a cara do mercado brasileiro. As outras montadoras embarcaram na tecnologia e, hoje, mais da metade dos carros sai das fábricas com o sistema bicombustível. A Volkswagen é atualmente a líder desse mercado e trabalha para ser a primeira montadora a instalar essa tecnologia em 100% de sua frota, programando o lançamento do Golf Total Flex para março de 2006.
A tecnologia conhecida como Flex-Fuel nasceu de pesquisas realizadas nos Estados Unidos, Europa e Japão no final da década de 80. Buscava-se uma solução para o problema de falta de infra-estrutura de distribuição e abastecimento para o uso de metanol e etanol, que inviabilizava o uso e expansão desses combustíveis. Nos Estados Unidos, uma lei de 1988, denominada Ato dos Combustíveis Automotivos Alternativos, estimulou o desenvolvimento dessa tecnologia, que possibilitou o uso de misturas de álcool-gasolina, até o limite de 85% de álcool. Tal limite foi estabelecido com o propósito de facilitar a partida do motor em condições extremas de frio, comuns em diversas regiões daquele país.
A tecnologia se baseia no reconhecimento, por meio de sensores, do teor de álcool em mistura com a gasolina e no ajuste automático da operação do motor para as condições mais favoráveis ao uso da mistura em questão. Pode-se dizer que essa tecnologia transformou o motor convencional à gasolina em um motor inteligente. Em 1992, a General Motors introduziu a tecnologia Flex-Fuel no mercado norte-americano. Em seguida, outros fabricantes passaram também a disponibilizar produtos com características semelhantes, que foram destinados principalmente para frotas cativas. Estima-se que existam atualmente mais de 1,5 milhão desses veículos nos Estados Unidos. Recentes estudos indicam que a tecnologia é considerada confiável pelos usuários e que os custos com manutenção são equivalentes aos dos veículos a gasolina.
No Brasil, os estudos para a aplicação dessa tecnologia se iniciaram na Bosch, em 1994, que vislumbrou a possibilidade de veículos Flex-Fuel substituírem os veículos exclusivamente a álcool, que na ocasião apresentavam declínio nas vendas. Os defensores da nova tecnologia argumentavam que, apesar de o Brasil dispor de uma ampla infra-estrutura de abastecimento de álcool, a sensação de segurança associada à possibilidade de escolha pelo consumidor do uso de gasolina, de álcool ou de qualquer mistura destes combustíveis, representaria um fator de atratividade e diferenciação no mercado consumidor. Representaria, também, economia para as montadoras, que não precisariam mais desenvolver projetos em duplicata para veículos a álcool e a gasolina.
Os primeiros passos no desenvolvimento de um veículo bicombustível na Bosch começaram há 10 anos, quando a empresa comprou um veículo 2.0 a álcool e passou a estudar uma maneira de tornar o funcionamento do seu motor eficiente com gasolina e/ou álcool. “Como o protótipo contava apenas com motor a gasolina, tivemos que trocar os pistões para aumentar a taxa de compressão, que tem de ser mais elevada para o uso do álcool. A seguir, vieram as modificações para fazer o carro aceitar os dois combustíveis”, contou Jaime Gulinelli, engenheiro de desenvolvimento da empresa. Além do estudo de materiais resistentes, foi necessário adequar o avanço de ignição, o sistema de partida e as velas de ignição ao uso dos dois combustíveis. Para o motor funcionar adequadamente, o sensor de oxigênio passaria a analisar a proporção da mistura álcool/gasolina que estivesse sendo queimada e remeteria essa informação para a central de injeção eletrônica. A partir daí, o sistema encontraria o ajuste ideal para preservar as condições de dirigibilidade. “No final das contas, os resultados ficaram muito próximos aos dos modelos fabricados em série. No nível em que se encontra, o Flex Fuel da Bosch, desenvolvido por engenheiros brasileiros, está pronto para equipar carros produzidos em série”, afirma Oliveira.
Para os produtores de álcool, significaria maior flexibilidade na oferta de seu combustível em função de variações de safra e oportunidades no mercado de açúcar. As pesquisas realizadas no Brasil resultaram em uma concepção tecnológica superior à norte-americana. Enquanto nos EUA os veículos Flex-Fuel foram derivados dos veículos a gasolina, no Brasil se aproveitou a experiência com os veículos a álcool, que são equipados com motores de taxa de compressão mais elevada. Dessa forma, o conceito Flex-Fuel nacional se mostrou melhor em termos de desempenho e economia de combustível, além de possibilitar o uso de até 100% de álcool.
Comparando-se com a matriz na Alemanha a subsidiária da Bosh em Campinas desenvolve apenas 1% das patentes produzidas pela multinacional alemã. Ainda assim, a subsidiária, que conta com 500 pesquisadores, em sua unidade para tecnologias de combustíveis alternativos tornou-se referência mundial graças a criação de peças e softwares que permitiram o surgimento do motor Flex Fuel em 1994, tecnologia hoje utilizada em 90% dos veículos produzidos no país. A invenção foi lançada com sucesso na Europa em 2004. Na Suécia cerca de 25% dos carros vendidos utilizam a tecnologia flex. Com iso a unidade de combustíveis alternativos da empresa tornou-se líder em número de pesquisadores e patentes na América Latina. Em março de 2009 foi criado o Flex Start que dispensa o famoso tanquinho de gasolina que até então era necessário para dar partida no motor Flex. O projeto rendeu aos pesquisadores da unidade brasileira sete pedidos de patente de invenção e de modelos de utilidade, bem como o prêmio mundial de inovação realizado pela Bosh, a primeira vez em que este prêmio ficou fora da Alemanha.
Em 1999, uma outra importante empresa de tecnologia automobilística, a Magneti Marelli, anunciou também dispor dessa tecnologia. A Magneti Marelli gastou R$ 3 milhões nos últimos quatro anos para desenvolver o software que, acoplado ao sistema de gerenciamento do motor, identifica qual combustível está sendo usado, faz a adaptação e possibilita o funcionamento normal do carro. Testes já constataram a manutenção da performance e da dirigibilidade do Flexfuel, diz o diretor de Programas da Magneti, Fernando Damasceno. A empresa tem capacidade para produzir 1 milhão de sistemas ao ano e está negociando o fornecimento para várias montadoras. “Esse carro vai ser um regulador fantástico de preços de combustível”, avalia Damasceno, para quem a tecnologia desenvolvida no Brasil também poderá ser exportada.
A tecnologia SFS – Software Flexfuel Sensor, desenvolvida pela Magneti Marelli (SP), usa um programa de computador inserido diretamente no módulo de comando da injeção eletrônica. Em outros países, os veículos Flex usam um sensor físico de combustível caro e inadequado para o combustível brasileiro. A tecnologia SFS é totalmente nacional. O primeiro modelo a usá-la foi o carro Gol Total Flex, lançado em março de 2003, e hoje o SFS já está em 65% dos veículos Flex no mercado nacional. A principal vantagem desses veículos é a liberdade de escolha do combustível na hora do abastecimento. A empresa recebeu o segundo lugar do Prêmio Finep 2004 na categoria Produto Região Sudeste.
A presença do sistema flex de gerenciamento de combustíveis é especialmente importante nos motores mil por ser a faixa de maior sensibilidade. Esses motores percebem com maior intensidade o combustível utilizado, exigem maior rapidez na assimilação das regulagens a cada momento e evidenciam de forma mais intensa as diferenças no consumo de combustíveis. Para o desenvolvimento desse novo motor a Magneti Marelli consumiu mais de 12 meses entre pesquisa e desenvolvimento, introduzindo estratégias inovadoras de controle motor em relação aos demais produtos hoje encontrados no mercado.
O SFS – Software Flexfuel Sensor – é um poderoso programa de computador inserido no módulo de comando da injeção eletrônica, também conhecido como centralina. Esta tecnologia faz com que o veículo possa rodar com álcool, gasolina, ou qualquer mistura dos dois combustíveis, sem perda de potência ou aumento da emissão de poluentes. Nesta visão, a Magneti Marelli também oferece ao consumidor a opção de poluir menos, mostrando sua preocupação com o meio ambiente. Líder no segmento de bicombustíveis com cerca de 65% do mercado, o grupo está presente no Brasil há 27 anos e mantém a primeira posição no ranking brasileiro de sistemas de injeção eletrônica: levando-se em consideração todos os tipos de motores (gasolina, álcool e bicombustível), a Magneti Marelli responde hoje por 39% do mercado nacional. Com a expansão do bicombustível, agora mais acessível devido à ampliação do leque de opções de motorização 1.0, esse percentual geral deve apresentar índices importantes de crescimento, segundo Silvério Bonfiglioli, principal executivo e representante da empresa no Brasil. “É um mercado que a Magneti Marelli conhece muito bem: a origem da empresa no Brasil foi exatamente no sistema de alimentação de motores gasolina e álcool”.
A Magneti Marelli faturou R$ 1,243 bilhão em 2004, sendo que 27% deste valor corresponde à Controle Motor, unidade responsável pelo desenvolvimento e produção dos sistemas de injeção eletrônica. Em 2004, cerca de 850 mil sistemas deixaram as linhas automatizadas da fábrica de Hortolândia, no interior de SP. A unidade trabalha hoje com um plano de investimentos de R$ 69 milhões (até o final de 2005) para ampliar a capacidade da produção, desenvolver novos produtos, entre eles concluir a tecnologia TETRA FUEL® (permite que o carro rode com quatro combustíveis – álcool, gasolina pura ou nafta, gasolina aditivada ou GNV – gás natural veicular), e manter-se na liderança tecnológica do mercado de flexíveis. “O flex já nos exigiu mais de R$ 9 milhões em desenvolvimento e vamos investir outros R$ 9 milhões na evolução desta tecnologia, pois este é um mercado que tende a crescer cada vez mais, seja no Brasil, seja no exterior”, aposta Bonfiglioli.
Os sistemas bicombustíveis existentes em outros países exigem a inclusão de um sensor físico de alto custo para analisar a mistura do combustível, que encarece muito o valor do veículo, desnecessário no caso do SFS. O sucesso do flex no Brasil se deve a tecnologia desenvolvida pela Magneti Marelli – 100% brasileira – que ao invés do sensor físico usa um programa de computador, o SFS, que está inserido no módulo de comando da injeção eletrônica, também conhecido como centralina. A tecnologia identifica e quantifica a mistura entre álcool e gasolina do tanque, usando informações recebidas de sensores instalados em todo o sistema de injeção de combustível, entre os quais a sonda Lambda, sensores de temperatura, velocidade, rotação e detonação. A partir dessas informações, o programa determina a quantidade de combustível que será injetada no motor e também o instante da faísca que vai saltar da vela para efetuar a queima dessa mistura. As características do álcool são diferentes da gasolina e o sistema adeqüa o funcionamento do motor com qualquer proporção da mistura em milisegundos. Apesar da potência do motor ser a mesma com qualquer que seja a mistura, quando o veículo é abastecido com álcool o carro tende a oferecer melhor desempenho, enquanto que com gasolina tem maior autonomia de rodagem.
Apesar da oferta de sistemas Flex-Fuel, as montadoras instaladas no país não mostraram muito entusiasmo na ocasião, alegando que necessitavam de incentivos fiscais para compensar os investimentos nesses projetos”. Justificavam, também, que necessitavam conhecer a classificação fiscal para os veículos equipados com a nova tecnologia e os respectivos critérios de homologação, registro e licenciamento. Tais questionamentos e a indefinição do governo sobre esses temas levaram à postergação dos projetos Flex-Fuel no país.
A Robert Bosch é líder mundial no desenvolvimento de tecnologia automotiva. A empresa investe 7% de seu faturamento global em Pesquisa e Desenvolvimento, tendo cerca de 16 mil pessoas dedicadas exclusivamente a esta área. De seus laboratórios saíram produtos que marcaram a história automobilística, como a vela de ignição, o freio ABS e os sistemas de injeção diesel de alta pressão. Este pioneirismo tem hoje no Brasil o sistema de injeção e ignição para motores a gasolina e/ou álcool – Flex Fuel – como um de seus principais exemplos. Elaborado pela equipe de engenharia brasileira da Bosch, ele é o resultado de um trabalho intenso de pesquisa, iniciado em 1982, com o desenvolvimento de componentes do sistema de injeção, em motores ciclo Otto, para trabalhar com álcool (combustível menos poluente que a gasolina). Foi isto que possibilitou, em 1992, o estudo do Flex Fuel – sistema que realiza de forma automática a adaptação de todas as funções de gerenciamento do motor para qualquer proporção de mistura de álcool e gasolina que esteja no tanque do automóvel.
Foi em meio à crise no abastecimento de álcool, no fim da década de 80, que um pequeno grupo de engenheiros da subsidiária brasileira da Robert Bosch teve a idéia que posteriormente patenteou como “Flex fuel” (combustível flexível). “Pensamos numa saída para aproveitar a disponibilidade do álcool no Brasil sem espantar de novo o consumidor que já havia tido que deixar o carro a álcool em casa por falta de oferta do combustível”, conta Sidney Barbosa de Oliveira, gerente de desenvolvimento e aplicação de produto da Bosch e um dos “pais” do “Flex fuel”. Inspirada no “flex fuel” já existente nos Estados Unidos – que adaptou carros a gasolina para receber álcool – a equipe da Bosch fez o contrário e adaptou o carro brasileiro a álcool para também receber gasolina. Além dos sistema de gerenciamento do motor, foram feitas mudanças de geometria e tratamento das peças para evitar corrosões, que atrapalharam o Proálcool na década de 80. Os engenheiros compraram um Omega no mercado, fizeram as adaptações e rodaram 165 mil quilômetros com o veículo. Em 2000, desmontaram o carro e perceberam que as peças estavam perfeitas. A partir daí, trabalharam no lançamento do primeiro protótipo, em 1991 e o sistema ficou pronto em 1994.
Com a apresentação pela Ford de um protótipo Flex-Fuel, no começo de 2002, associado a um crescente interesse por novos incentivos para a ampliação do uso do álcool, surgiu um interesse renovado pela nova tecnologia, que estimulou diversos setores do Governo Federal a avaliarem os seus méritos. Finalmente, em agosto de 2002, a reclassificação de IPI para veículos trouxe consigo a definição de que veículos Flex-Fuel, teriam o mesmo tratamento fiscal que os veículos a álcool. Essa notícia e o aumento do interesse pelo uso do álcool em outros países como a Índia, China, Tailândia e Austrália, está motivando as montadoras a examinar, com renovado interesse, as possibilidades de tornar o Brasil um centro de produção de veículos Flex-Fuel, tanto para o mercado interno como para exportação. Nesse contexto, a Ford anunciou recentemente o lançamento do Fiesta Flex-Fuel, para meados de 2003. Diversos especialistas acreditam que os veículos Flex-Fuel representarão um novo marco na bem sucedida experiência brasileira com o uso de álcool e oportunidades de exportação dessa tecnologia. Resta agora a resposta do consumidor aos veículos inteligentes que deverão surgir no mercado. Vamos aguardar que 2003 nos traga boas surpresas.
O motor bicombustível funciona de maneira similar a um motor a gasolina convencional, que serviu de base para o desenvolvimento do sistema flex fuel. O que muda é a central eletrônica que gerencia o funcionamento. A central identifica a proporção da mistura álcool-gasolina e ajusta o funcionamento do motor, alterando o ponto de ignição, o tempo de injeção de combustível e a abertura e o fechamento das válvulas. Para compensar o menor poder de detonação do álcool, a unidade de comando eletrônico adianta o ponto de ignição. Um sensor detecta o combustível utilizado e a proporção da mistura álcool-gasolina no tanque, a partir de variáveis como temperatura e velocidade de rotação. A central memoriza a última proporção utilizada e se encarrega de acionar a partida a frio, caso o tanque contenha mais de 80% de álcool e a temperatura externa seja inferior a 20C. Um sensor de rotação substitui o distribuidor de ignição. Por meio dos gases resultantes da queima na câmara de combustão, a sonda lambda confirma os dados apontados pelo sensor de gerenciamento e informa à central eletrônica o ajuste a ser feito para o funcionamento do motor.
No motor algumas mudanças foram feitas: o coletor de admissão foi alterado para receber a partida a frio, como no modelo à álcool. O tamanho e a vazão dos bicos injetores é maior. As válvulas de escape,a linha de alimentação e a bomba de gasolina receberam revestimento anti-corrosão. O tempode abertura e fechamento das válvulas foi modificado. As velas de ignição contam com três eletrodos de platina, com prolongamento maior para melhorar a queima na câmara de combustão. O primeiro modelo bicombustível a chegar ao mercado brasileiro foi o Gol Total Flex, em março de 2003.
Fonte: http://www.fueleconomy.gov/feg/flextech.shtml
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Guia de Mecânica Quatro Rodas Especial, Como funciona seu carro em 105 respostas, Editora Abril, 2003 http://www.energynews.efei.br/
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http://www.finep.gov.br/premio/folhas_inovacao_premio_2004/sudeste_tela.pdf
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28/9/2006 – As 10 melhores inovações brasileiras, Autor: Revista Exame http://www.inovar.org.br/noticias/NoticiasDetalhe.asp?idNoticia=3274
acesso em outubro de 2006
Revista Propriedade e Ética, n.8, ano 2, março/abril 2009, p. 28
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