A cana ideal, mais produtiva, resistente a pragas e doenças, tolerante à seca e a herbicidas, e eficiente na absorção de nutrientes a ponto de sobreviver mais facilmente em solos ácidos ou pouco férteis, poderá tomar forma a partir das descobertas do Genoma Cana, que chegou ao fim em 2001, um ano e meio após ter sido anunciado publicamente. Os 240 pesquisadores que estão trabalhando nesse projeto, o primeiro sequenciamento de um vegetal realizado no Brasil – identificaram cerca de 80 mil genes que dão um mapa completo de como a planta vive, se reproduz e morre e, devidamente manipulados, podem viabilizar essas características tão sonhadas pelos fazendeiros e fabricantes de açúcar e álcool. A cana redesenhada já tem data para nascer. “Em dois anos, devem estar prontas, pelo menos em laboratório, as primeiras variedades de cana resistentes a duas pragas, a bactéria Leifsonia xyli e o fungo-do-carvão”, anuncia Paulo Arruda, coordenador de DNA, que está à frente de uma rede de 60 laboratórios, 22 deles atentos ao sequenciamento e outros 48 dedicados à mineração ou prospecção de dados, ou chamado data mining. “Podemos sonhar ainda mais alto”, diz Éder Giglioti, pesquisador da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ainda não é a prioridade, mas, segundo ele, já se pode pensar em utilizar a cana-de-açúcar como biorreator, capaz de produzir não apenas açúcar e álcool, mas também compostos químicos de interesse para a indústria farmacêutica, como já começa a ser feito em outros países.
Em breve, o Genoma Cana ou Sucest, do inglês Sugarcane EST, deverá abrir-se em duas vertentes. De um lado, deve-se fortalecer a pesquisa aplicada, em busca de novas variedades de cana. De outro, prosseguem os estudos básicos, voltados para uma compreensão mais aprofundada dos mecanismos biológicos da cana. Arruda imagina que essas duas linhas vão se cruzar e se beneficiar continuamente. “Vamos unir a fronteira do conhecimento científico com a busca de resultados”, diz ele. A novidade é a participação dos produtores de açúcar e álcool, com quem ele tem conversado intensamente nos últimos meses. Seus objetivos: identificar os problemas específicos a serem trabalhados com as informações colhidas no Genoma Cana e conseguir novos parceiros que possam financiar uma parte das pesquisas nessa nova fase. São eles: o Centro de Tecnologia da Cooperativa dos Produtores de Cana, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo (Copersucar), que nessa etapa inicial contribuiu com cerca de US$ 400 mil para o projeto, o Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e o Centro de Ciências Agrárias da UFSCar, em Araras, construído a partir das instalações do Plano Nacional de Melhoramento da Cana-de-Açúcar (Planalsucar), extinto no início dos anos 90.
Feitas as contas, o Genoma Cana deverá terminar quase um ano antes do prazo previsto e custando a metade dos US$ 8 milhões aprovados pela FAPESP. A economia resulta, em parte, da infraestrutura já instalada e da experiência da equipe: dos 32 laboratórios iniciais, 15 do grupo de sequenciamento e oito da data mining haviam participado do Genoma Xylella, projeto pioneiro de sequenciamento da bactéria Xylella fastidiosa, concluído no início do ano, que pôs a comunidade científica nacional na linha de frente da genômica mundial. Os pesquisadores superaram a meta inicial de 50 mil genes ativos ou expressos, diretamente associados ao metabolismo da planta. Já se conhece a função de dois terços desse total, por causa da semelhança apresentada com os genes de outros organismos, descritos em bancos de dados internacionais. A outra parte é ainda mais importante: um terço dos genes encontrados é inédito, sem equivalente em outros organismos, pode residir aí a origem das características mais peculiares da cana. É uma montanha de informações que os pesquisadores pretendem organizar, até dezembro, na forma de um gene index, uma relação dos genes da cana agrupados por função.
O trabalho de análise de dados, a data mining, implica passar horas diante do computador à procura de semelhanças genéticas entre a cana e outras plantas e mesmo outras espécies, incluindo microrganismos, animais e o homem. Uma autêntica garimpagem: há cerca de 500 projetos de sequenciamento em andamento no mundo, da maçã ao gato doméstico. Foi assim que, na Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp, em Botucatu, Eiko Eurya Kuramae encontrou 240 genes relacionados à produção de substâncias de defesa contra patógenos (fungos, vírus, bactérias) e insetos. Com eles, Eiko chegou a um modelo de como a planta age diante de um ataque externo, um conhecimento estratégico quando se pensa em desenvolver plantas mais resistentes a pragas. É uma luta difícil, de lado a lado. Quando atacada, a planta procura impedir a entrada dos microrganismos. Se não consegue, produz substâncias tóxicas que inibem o avanço dos invasores.
Pesquisadores da UFSCar descobriram um modo de combater fungos e insetos que atacam a cana por meio do melhoramento genético da planta. Um gene mapeado pelo projeto Genoma Cana, ataca os insetos causadores de doenças como a broca e os fungos, que provocam a perda do nível de sacarose e podem matar a planta. A broca abre galerias no caule da cana, enquanto os fungos aproveitam essas cavidades para se alimentar da planta. Com a presença desse gene, a planta pode ser reforçada por meio do cruzamento das variedades da cana para evitar a ação desses organismos. O programa da UFSCar é responsável por praticamente todas as variedades de cana plantadas na região de Ribeirão Preto. Os pesquisadores também estão tentando desenvolver fungicidas e inseticidas no combate à broca e aos fungos. A proteína (gene) também está sendo testada em parceria com a Escola de Medicina da Univesp (Universidade Federal do Estado de São Paulo), no combate a doenças do ser humano, como osteoporose, mal de Alzheimer e alguns tipos de câncer causados por excesso de proteose nas células. “Se conseguirmos administrar a formação dessas proteínas, será possível o desenvolvimento de medicamentos”, disse Flávio Henrique da Silva, pesquisador do Departamento de Genética e Evolução da UFSCar. Além da cana, a proteína também inibe os fungos que atacam o café, o caju e o guaraná.
Fonte:
http://www.fapesp.br/capa591.htm
http://www.udop.com.br/tecnologia/materias/tec_03_12_04.htm
acesso em janeiro de 2003