Automóveis

“Cena e Br800”

Além dos utilitários, como o Xavante, Gurgel sonhava com um minicarro econômico, barato e 100% brasileiro para os centros urbanos. Amaral Gurgel sempre foi cético com relação ao Proálcool, achava que terras férteis deveriam produzir alimentos e que não fazia sentido subsidiar álcool enquanto o Brasil exportava gasolina barata. Para ele, a energia do futuro era a elétrica, por isso a Gurgel Motores sempre pesquisou essa tecnologia, desde o princípio. Ainda em 1981 a Gurgel Motores lançou o Itaipú, uma van elétrica. Para sua recarga bastava conectá-la a uma tomada doméstica, mas o desempenho era fraco (vazia não superava os 70 km/h) e as baterias (que representavam 1/4 do preço do carro) tinham vida útil curta. O carro acabou um fracasso de vendas e foi descontinuado no ano seguinte, mas a empresa continuou desenvolvendo protótipos elétricos, sem nunca chegar a um economicamente viável.

Um dos modelos elétricos se chamaria CENA — carro elétrico nacional –, nome que ressurgiria no projeto do BR-280/800, modelo à gasolina, com o “e” representando “econômico” desenvolvido entre 1984 e 1988, o que talvez tenha sido o projeto mais ambicioso de uma empresa brasileira em todos os tempos. Esse projeto, denominado CENA (Carro Econômico Nacional), visava criar um carro totalmente projetado e manufaturado no Brasil, e que fosse econômico, custasse menos de US$3000,00 e tivesse ainda manutenção simples e barata. Esse carro deveria ser para a Gurgel o que o Modelo-T fora para a Ford e o que o Fusca fora para a VW. No final de 1987 unidades pré-série foram ter às pistas de testes para definir os últimos acertos e em 1988 o carro rebatizado como BR-800 começou a ser produzido em série. O Governo Federal, num louvável gesto de apoio à indústria nacional, concedeu ao carrinho o direito de pagar apenas 5% de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), enquanto os demais carros pagavam 25% ou mais dependendo da cilindrada. 

“Quando eu pensei no Cena pela primeira vez, imaginei que ele deveria introduzir um novo conceito tecnológico, pois só assim conseguiria chegar ao sucesso. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o Ford T, ou o Volkswagen (Fusca). Por isso, demos prioridade aos aspectos tecnológicos do carro”, explica o engenheiro Gurgel, presidente da Gurgel S.A. Em 7 de setembro de 1987 — segundo ele, dia da independência tecnológica brasileira — apresentou o projeto Cena, de Carro Econômico Nacional, ou Gurgel 280. O próprio Gurgel enfatiza que, a começar pelo chassi, muitas soluções criativas foram aos poucos viabilizadas. Pesando apenas 42 quilos, o chassi é do tipo envolvente, de construção tubular (com seção quadrada), proporcionando boa segurança aos passageiros. Ele é dividido em duas metades (interior e superior) e forma uma espécie de sanduíche com a carroceria, garantindo correta fixaçao ao sistema. Primeiro minicarro da empresa e projetado para ser o mais barato do país, era bem pequeno e de aparência frágil. Os motores, de configuração única no mundo, eram como os VW 1.300 e 1.600 cortados ao meio: dois cilindros horizontais opostos, 650 ou 800 cm3 — mas refrigerados a água. A potência seria de 26 ou 32 cv, conforme a versão. 

O carro seria lançado em opções 280 S, de sedã, e 280 M, de múltiplo, com capota removível — restavam, porém, as molduras das portas e vidros laterais, bem como uma barra estrutural do teto. Solução interessante era o porta-luvas, uma maleta executiva que podia ser removida. Com a evolução do projeto, o motor menor foi abandonado e a cilindrada fixada em 0,8 litro, originando o nome BR-800. O motor fundido em liga de alumínio-silício era batizado como Enertron e projetado pela própria empresa.

O avanço de ignição era controlado por um microprocessador (garantido durante cinco anos) e não havia necessidade de distribuidor, pois o disparo era simultâneo nos dois cilindros, idéia aproveitada dos motores Citroën de disposição semelhante. O sistema de ignição era outra patente da Gurgel. A velocidade máxima era de 110 km/h e, com quatro marchas e tração traseira, atingia 100 km/h em cerca de 32 s. 

Tanta lerdeza resultava da teimosia de Gurgel. O eixo traseiro rígido era o Dana 26 de Chevette, com o conjunto coroa-pinhão de relação 4,10:1 do picape Chevy 500. Era óbvio ser longo demais para o motor com metade da cilindrada do Chevrolet, mas o engenheiro não dava ouvido aos conselhos de sua equipe técnica no sentido de adotar a relação 4,89:1, disponível no fornecedor. Ele teimosamente insistia na questão de durabilidade — pelas baixas rotações em velocidades de viagem –, não se importando com desempenho, algo de que os consumidores não abrem mão tão facilmente.

A suspensão dianteira tem altura regulável e introduz um interessante conceito, que elimina os amortecedores. Eles foram substituidos por dois discos de fricção (com pressão também regulável), que agem como amortecedores. Os braços têm geometria variável e proporcionam amortecimento progressivo. O sistema foi inspirado nas suspensões de motocicleta do tipo monochoque. As molas helicoidais foram mantidas. O desgaste dos discos, segundo Gurgel, deverá se equivaler ao do disco de uma embreagem comum. A suspensão dianteira tem altura regulável e introduz um interessante conceito, que elimina os amortecedores. Eles foram substituidos por dois discos de fricção (com pressão também regulável), que agem corno amortecedores. Os braços têm geometria variável e proporcionam amortecimento progressivo. O sistema foi inspirado nas suspensões de motocicleta do tipo monochoque. As molas helicoidais foram mantidas. O desgaste dos discos, segundo Gurgel, deverá se equivaler ao do disco de uma embreagem comum. 

A tração, traseira, se processa por um diferencial de eixo rígido, com suspensão através de feixe de molas de duplo estágio (para carga leve e lotação total) e amortecedores. Apenas na suspensão dianteira é que os amortecedores foram substituidos por discos. O câmbio é de quatro marchas para frente e ré, e terá inicialmente uma versão de engate rápido (como em motos). Haverá, depois, a opção de câmbio com marchas sincronizadas. 

Também de inspiração motociclística (com certeza nos motores BMW), o motor do Cena foi alvo dos maiores cuidados do pessoal da Gurgel Tec (empresa do grupo responsável pelo desenvolvimento técnico do projeto). Ele é um dois-cilindros, com cilindros horizontais contrapostos, refrigerado a água, onde se eliminaram as correias do alternador e distribuidor. Na verdade, nem distribuidor o motor tem. O avanço da ignição é controlado por um processador digital baseado em dois sensores que medem as rotações do motor e o vácuo do carburador. O sistema tem a vantagem de proporcionar uma melhor queima da mistura, inclusive porque sao emitidas duas faíscas por ciclo (para queima total dos gases de exaustão), o que resulta também em menos poluição ambiental. A bobina é dupla, alimentando cada cilindro de forma independente. O pequeno motor reunia alguns aspectos notáveis. Por exemplo, podia ser levado a praticamente 6.000 rpm sem flutuação de válvula (fechamento incompleto devido à velocidade excessiva), o que o motor VW não tolerava, mal passando de 5.000 rpm. A refrigeração a água com ventilador elétrico funcionava muito bem.

Gurgel, sempre querendo incorporar avanços, idealizou o motor sem correia trapezoidal para acionar acessórios, como o alternador, visando facilidade de manutenção, preocupação nada desprezível. Para isso, o alternador era acoplado diretamente ao comando de válvulas. Só que devido à rotação do comando ser metade da do motor, o alternador não desenvolvia potência suficiente em várias condições de uso, como todos os acessórios ligados ao dirigir moderadamente. O resultado era a descarga da bateria, uma inconveniência e tanto para o motorista. Assim, a fábrica não demorou para voltar atrás e modificar a montagem do alternador, que passou a receber movimento do motor pela maneira tradicional de polias e correia trapezoidal, e com redução apropriada (cerca de 2:1), resolvendo definitivamente o problema.

O BR podia transportar quatro passageiros com relativo conforto e 200 kg de carga. Pesava 650 kg, tinha duas portas e vidros corrediços — o que prejudicava a ventilação da cabine. Para guardar objetos no pequeno porta-malas, abria-se o vidro traseiro basculante, que servia de porta — mas o acesso não era dos mais cômodos. Ainda assim era melhor do que a solução original de vidro traseiro fixo, em que era preciso acessar aquele compartimento por dentro do carro, como no Fusca. Por outro lado, o estepe tinha acesso por fora, em uma tampa traseira, muito prático. Lançado em 1988, foi produzido até 1991.

Para a viabilização do Cena a Gurgel construiu uma nova unidade industrial com 3.500 metros quadrados, onde foram instalados o CGU – Centro Geral de Usinagem e a Gurgel Tec. Além disso, um novo prédio, com área construída de 5.000 metros quadrados, abrigava a linha de montagem dos veículos da família Gurgel (incluindo-se aí o Cena). Gurgel comenta: “Começamos a construir a fábrica em 1975, com financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Em 1985, já estava madura a idéia de um carro completo. O então ministro da Ciência e Tecnologia, Renato Archer, deu-nos o apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Quase fechamos um acordo com a Citroën para fornecimento do motor, mas os franceses impuseram muitas exigências. Partimos para nosso próprio motor, com a verba da Finep. Houve grande torcida contra por parte das montadoras. “Não se faz um carro com 6 milhões de dólares, isso é projeto para mais de 300 milhões”, disseram ao ministro Archer. Ele me chamou. “É uma questão de confiança”, eu disse. “Tenho o projeto na cabeça, tudo muito prático, não vai custar rios de dinheiro como dizem.” O ministro apostou na Gurgel. Eu garanti: “Dentro de um ano o senhor estará inaugurando nossa fábrica de motores. No dia da inauguração da fábrica de motor, 24 de junho de 1987, o futuro carro era apenas um rascunho. Mas o ministro perguntou: “Não dá para aprontar alguns para o desfile de 7 de Setembro em Brasília?” Isso nos dava menos de três meses! Mas fizemos e foi um sucesso!”. 

Um dos objetivos principais do projeto não foi atingido: o preço ficara em US$7000,00, mas graças ao incentivo fiscal, ainda era cerca de 30% mais barato que os compactos de outras montadoras. Nos dois primeiros anos, todas as unidades eram destinadas a quem comprasse um lote de ações da Gurgel; o carro mais as ações saía por algo em torno de US$15000,00. Mesmo assim o sucesso foi imediato, quem conseguia o carro revendía-o com até 100% de ágio facilmente. É que a idéia de um carro totalmente brasileiro despertara um generalizado nacionalismo ufanista. Apesar de beneficiado por uma redução de impostos, cuja classificação de veículos enquadráveis praticamente o descrevia, o BR-800 não fez sucesso por muito tempo. 

Em 1990, quando o carro começava a ser vendido sem o pacote compulsório de ações, quando parecia estar surgindo uma nova potência (tupiniquim) no mercado automobilístico, o Governo isenta todos os carros com motor menor que 1000cm³ do IPI (numa espécie de traição à Gurgel). Assim a Fiat lançou quase instantaneamente o Uno Mille, pelo mesmo preço do BR-800, mas que oferecia mais espaço e desempenho. Atolada em dívidas e combalida no mercado pela concorrência das multinacionais, a Gurgel pediu concordata em junho de 1993 e acabou fechando as portas no final de 1994. Sem dúvida o grande engenheiro, revolucionário e teimoso João Gurgel — hoje com 75 anos — deixou seu legado na indústria nacional. Foi um homem à frente do seu tempo, corajoso e patriota. Infelizmente, as enormes dívidas contraídas, as importações abertas no país e a inevitável globalização puseram fim a seus projetos e a seus sonhos 

Gurgel identifica a constante inovação como o segredo para o sucesso:“Estar sempre na frente, ir buscar novas soluções. Veja o Henry Ford. Em um só ano, 1922, com 2,4 milhões do modelo T, produziu mais do que todo o mundo junto. Um sucesso! Só que ele continuou fazendo o mesmo. Aí a General Motors saiu em busca de um carro com partida elétrica, pois as manivelas estropeavam os braços das senhoras. A GM desenhou um carro com janela, porque dirigir veículo aberto no inverno americano devia ser dose.”

Fonte: 
http://www.uol.com.br/bestcars/classicos/gurgel-1.htm
http://www.geocities.com/gurgelbrasil/
http://www.montadorasbrasileiras.hpg.ig.com.br/Geral/7/index_hpg.html
 
acesso em janeiro de 2002
http://gurgelbr800.sites.uol.com.br/gurgelmotores/
 
http://gurgelbr800.sites.uol.com.br/materias/quatrorodas/325/inovacao.htm
http://gurgelbr800.sites.uol.com.br/materias/quatrorodas/389/
 
acesso em novembro de 2003
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