A Indústria Brasileira de Automóveis Presidente (Ibap) foi uma empresa genuinamente nacional que criou um carro de luxo, com tecnologia, desempenho e desenho muito mais avançados que os de seus concorrentes da época. Chamava-se Democrata o elegante sedã. O nome da fábrica era Presidente, e seu logotipo era uma engrenagem estilizada com o contorno do mapa do Brasil no centro.
Na porta da fábrica havia uma placa com dizeres que terminavam assim: “Juntos estamos dando ao mundo o maior exemplo do que um povo livre e unido pode realizar.” Apesar de todo o patriotismo demonstrado pela empresa e do grande potencial que ela tinha para gerar empregos, tecnologia e riquesas para o país, uma grande e cruel ironia seguiu-se: ela foi destruída pelo próprio Governo Brasileiro.
A história tem origem na iniciativa de um jovem empresário chamado Nelson Fernandes, então proprietário de um clube e de um hospital. Ele construiu sua fábrica de automóveis em um terreno em São Bernardo do Campo (SP), e a inaugurou em outubro de 1963. A fim de levantar recursos para viabilizar o projeto, Nelson Fernandes vendeu títulos de proriedade da Ibap (recurso semelhante foi utilizado vinte anos depois pela Gurgel, quando do lançamento do BR-800). Nesse processo a Ibap conseguiu reunir nada menos que 50 mil sócios-proprietários! Tudo graças à qualidade do projeto e à credibilidade dos empreendedores. Esses sócios proprietários tinham direito a dividendos e descontos especiais na aquisição do veículo.
O Democrata era um projeto avançadíssimo. A começar pelo seu desenho, fluido e elegante, só igualado anos mais tarde. A carroceria era de fibra de vidro e contava com uma qualidade altíssima nos acabamentos e peças encaixadas com perfeição. Ele levava cinco passageiros e sua bagagem. Os bancos dianteiros eram individuais e reclináveis, entre eles havia um console. O carro era equipado ainda com rádio e direção hidráulica.
Mas o grande trunfo do carro era a sua mecânica, desenvolvida no Brasil pelos engenheiros da Ibap, à excessão do motor, criado pela empresa italiana Procosautom (Proggetazione Costruzione Auto Motori) exclusivamente para o Democrata. O motor, instalado na traseira, era um V6 (com ângulo de 60°) 2.5 com bloco em alumínio que desenvolvia 120 cv a 4500 rpm. Uma potência elevadíssima para a época (bastante razoável até mesmo para os dias de hoje). O carro tem 4,68m de comprimento; 1,72m de largura; 1,39m de altura; bitolas dianteira e traseira com 1,39m e distância livre do solo, de 21cm. Seus 1 150 kg de peso eram impulsionados de 0 a 100 km/h em apenas 10 s, e os 120 cv ainda eram capazes de levar o Democrata aos 170 km/h de velocidade máxima.
Com tantas qualidades e a promessa de preços acessíveis, a Ibap e seu Democrata tinham tudo para conquistar boa parte do mercado brasileiro. Tamanho potencial também despertou preocupação em muita gente que tinha interesses contrariados. O Democrata foi alvo de uma abominável campanha difamatória, atribuída às montadoras concorrentes e que teve a conivência do Governo, ocorrendo inclusive algumas declarações muito infelizes por parte do ministro da Indústria e Comércio. A maior parte dos boatos punha em dúvida a durabilidade da carroceria em fibra de vidro. A fim de desmistificar o material, a Ibap fez uma campanha itinerante, levando Democratas a vários pontos do país e permitindo que as pessoas literalmente surrassem o carro com canos de ferro, a fim de comprovar que a resistência da fibra era até maior que das chapas de aço!
Mas os boatos mal-intencionados não eram nada perto do que estava por vir. O primeiro incidente foi a interceptação de um lote de peças vindas da Itália para a Ibap. A alegação era de que a carga seria um contrabando, apesar de a mercadoria ter origem regular e estar acompanhada de toda a documentação. Isso fez com que a Ibap se tornasse alvo de acusações infundadas que foram desmentidas por meio de um laudo de engenharia e contabilidade solicitado pela empresa à Polícia Técnica.
Outra situação inexplicada ocorreu quando o Governo colocou a FNM (Fábrica Nacional de Motores) à venda. A Ibap interessou-se por comprar a estatal, o que viabilizaria antecipar a produção do Ibap popular. A própria diretoria da FNM mostrou-se satisfeita com a possibilidade de ter a empresa absorvida por outra nacional. Desse modo, a Ibap entrou em contato com seus associados, ficando acertado que cada um deles contribuiria com uma quantia a fim de que fosse adquirida a FNM, em seguida foi formalizada a proposta de compra, oferecendo em garantia o terreno da Ibap em São Bernardo do Campo, quando tudo indicava que a FNM tornar-se-ia parte da Ibap, a proposta de compra foi recusada sem maiores explicações pelo Ministério da Indústria e Comércio, A Ibap ainda tentou participar da concorrência pelo cartório do Registro de Títulos e Documentos. Mas houve nova recusa, limitando-se o Ministério a alegar que faltava à Ibap respaldo financeiro para participar.
Em seguida a FNM foi entregue a um grupo estrangeiro por um valor irrisório. Abaixo do que fora proposto pela Ibap. Durante as negociações de venda da FNM, a Ibap ainda foi vítima de outro “incidente”: a Polícia Federal fez uma “batida” em suas dependências, apreendendo livros contábeis, extratos de contas bancárias e todos os projetos e documentação da empresa. Esse evento foi um dos expedientes de que lançou mão o Ministério da Indústria e Comércio para recusar a proposta da Ibap. No entanto, nenhuma irregularidade foi constatada no exame dos papéis.
Então veio incidente decisivo. Em uma inspeção relâmpago, o Banco Central elaborou um laudo atestando inexistência de itens para a produção ou mesmo montagem de quaisquer dos componentes do veículo motorizado; inexistência de contratos com quaisquer das fábricas de veículos ou autopeças, quer no país, quer no exterior; não constar da organização da empresa a presença de técnicos em quaisquer das numerosas especialidades essenciais à fabricação de automóveis, ou à elaboração dos projetos respectivos. Esse laudo era completamente absurdo. A simples constatação de que havia uma fábrica de automóveis legalmente constituída há dois anos, com algumas unidades prontas e mais cinqüenta sendo produzidas seria o bastante para refutar essa aberração. Isso sem contar que a empresa foi aprovada sem restrições por inspeções anteriores da Polícia Técnica e do Banco do Brasil. Então o Banco Central ainda moveu processos contra a Ibap acusando-a de coleta irregular de poupança popular sob falsa alegação de construir uma fábrica de automóveis. Mesmo sendo as acusações infundadas, os diretores da Ibap foram condenados. Fato para o qual o Ministério Publico simplesmente fechou os olhos.
A esse tempo, Nelson Fernandes ficou sabendo por um amigo, o então presidente da SUDEP, vice-almirante Antonio Maria Nunes de Sousa, que se não desistisse da Ibap, diretores da empresa e seus familiares sofreriam represálias. Foi quando Nelson foi obrigado a “aceitar” que a sociedade fosse “amigavelmente” dissolvida. Após ouvir o Procurador da República, o juiz de Direito da 1ª Vara da Justiça Federal de São Paulo, homologou, por sentença, a dissolução da Ibap pondo fim ao rumoroso processo nº 115855 que, só em poder do perito judicial tinha ficado durante treze anos.
Desse modo, o lançamento do Democrata foi abortado, em 1968, com apenas cinco unidades concluídas. A história toda é bizzarra. O patrimônio da empresa foi seqüestrado pela justiça, que somente vinte anos mais tarde reconheceu ter sido indevida a intervenção do Banco Central na empresa as instalações da fábrica ficaram abandonadas por todos esses anos. Somente no início dos anos 90 a área foi liberada e o Centro Automotivo Finardi, de São Paulo (SP), arrematou dois carros quase completos e muitas peças que lá se encontravam.
Em 1999 foi encontrado um terceiro Democrata, que foi adquirido pela Finardi e completamente restaurado em tempo recorde pela empresa. Detalhe impressionante é que o motor desse veículo pegou de primeira quando foi encontrado, apesar de estar parado há anos, esse carro foi a grande atração do último encontro do Veteran Car Club de Brasília (VCC-BSB), contando com o apoio do jornalista Roberto Nasser, membro do VCC-BSB e que foi um dos poucos a dirigir o Democrata na época do seu lançamento. Os dois outros Democratas encontrados serão igualmente reformados pelo Centro Finardi. Um dos carros ficará com os irmãos José Carlos e José Luiz Finardi, proprietátios da oficina, um com o VCC-BSB e outro com Nelson Fernandes, que atualmente é proprietário de um cemitério vertical em Curitiba (PR).
Organizando um livro sobre a indústria automobilística brasileira, o jornalista Roberto Nasser, curador da Fundação Memória do Transporte, descobriu duas unidades do automóvel nas ruínas do que fora a fábrica. Consumiu um mês para chegar ao antigo empreendedor, Nelson Fernandes, que se mudara de cidade e de ramo de negócio, provocando-o a escrever, no livro, o capítulo referente à IBAP, e a restaurar, salvando de fim certo e breve, um dos Democratas. Fernandes sensibilizou os irmãos Finardi, José Carlos e José Luiz, donos do centro automotivo com o mesmo nome em São Bernardo do Campo, SP — eles mesmos cotistas da IBAP –, a restaurar um dos exemplares, trabalho impressionante de transformação de um escombro em automóvel em apenas 20 dias. O resultado destas iniciativas foi exposto no III Encontro Brasileiro de Veículos Antigos, que se realizou no Centro de Convenções Ulysses Guimarães como parte do 40° aniversário de Brasília. É a apresentação, após 32 anos, do automóvel que não foi lançado.
Fonte:
http://www.uol.com.br/bestcars/nasser/70n.htm
http://www.montadorasbrasileiras.hpg.ig.com.br/carreira/40/index_int_5.html
http://www.jt.estadao.com.br/editorias/2001/02/08/ger593.html
acesso em março de 2002
http://freehost18.websamba.com/rodrigao/brasileiras/bribap.htm
acesso em novembro de 2002
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