Uma das doenças mais traiçoeiras do sistema nervoso central é a neurocisticercose. Difícil de ser diagnosticada, só é descoberta por um teste importado, muito caro, ou por métodos como a tomografia e a punção de líquido cefalorraquiano, complexos e de difícil acesso a pessoas de baixa renda. E são justamente essas pessoas as mais atingidas pela doença. Causada pelas larvas da Taenia solium, a solitária, um parasita que vive no organismo humano, a neurocisticercose tem como intermediário o porco criado em más condições de higiene. No Brasil, estima-se que cerca de 140 mil pessoas sofrem dessa doença, que pode causar lesões cerebrais graves e a morte. É possível que o número de vítimas seja até maior. Como o controle é precário e os sintomas demoram a aparecer, muitas pessoas podem ter neurocisticercose sem saber.
Um grupo de pesquisadores da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP) acaba de desenvolver um teste simples, prático, barato e eficiente para descobrir os portadores da doença. É feito com uma simples amostra de sangue da pessoa e o resultado está pronto em algumas horas. A pesquisa, Purificação e Caracterização de Antigenos de Cisticercos para o Desenvolvimento de Reagentes Diagnósticos para Cisticercose Humana, é o resultado de uma parceria da equipe com a FAPESP e com o laboratório francês Biolab-Mérieux. Após um ano de trabalho, o grupo da USP desenvolveu o teste, do tipo ELISA (Enzyme-Linked Immuno Sorbent Assay). O teste está em fase de aperfeiçoamento. Dentro de um ano, deverá estar em fase de produto comercial. “Nosso objetivo era desenvolver um teste que pudesse ser aplicado no soro, a parte do sangue onde estão os anticorpos, como uma alternativa à coleta de líquido cefalorraquiano, retirado por punção lombar”, explica a pesquisadora Adelaide José Vaz, professora de Imunológia da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP e coordenadora do projeto.
Segundo a professora, a grande vantagem do teste é que ele pode ser feito na clínica geral, na rede pública de atendimento, antes de o paciente ser encaminhado a um neurologista Com isso, o diagnóstico será mais precoce e pode-se conhecer a real situação da doença no país. A preocupação com a cisticercose vem acompanhando a pesquisadora desde 1987, quando ela trabalhava no Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo. Nos últimos 12 anos, juntamente com outros pesquisadores do Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da USP, a professora Adelaide aprofundou-se no estudo da neurocisticercose, a forma mais grave da cisticercose, doença que se desenvolve em pessoas contaminadas com os ovos da Taenia solium, o parasita popularmente conhecido como solitária. Quando o sistema nervoso central é afetado, o paciente pode apresentar sintomas graves, como a meningite, e pode desenvolver epilepsia, o sintoma mais freqüente, distúrbios mentais e psíquicos, cefaléia e hipertensão intracraniana.
A doença está diretamente ligada às condições de higiene do ambiente. Geralmente, sua incidência é alta em áreas onde não há água tratada e rede de esgoto e atinge pessoas que não observam cuidados com a higiene, como lavar as mãos antes de manipular alimentos, por exemplo. Isso significa que educação sanitária e investimentos em saneamento básico também são fatores muito importantes para o controle da doença. “O principal vetor é o próprio homem, que desenvolve a Taenia solium no intestino após ingerir carne de porco contaminada”, explica a pesquisadora. Até esse estágio, o problema pode ser tratado e eliminado sem problemas para o paciente. Mas, uma vez instalada, a Taenia é uma fonte imensa de perigo. A cada dia, o hóspede indesejável põe entre 30 mil a 50 mil ovos microscópicos, que, expelidos com as fezes, invadem o meio ambiente. Se ingeridos por meio de água ou alimentos contaminados, os ovos vão transformar-se em cisticerco, ou larva, e provocar a doença. Atingindo o cérebro, o que era no primeiro momento um simples parasita provoca a neurocisticercose, completando o ciclo da doença
No meio do caminho, como hospedeiro intermediário, geralmente está o porco. Isso porque o animal, que também desenvolve cisticercose, é criado com freqüência em pequenas propriedades sem os cuidados de higiene necessários. Ele costuma ser alimentado com uma mistura de restos de comida, que pode facilmente conter fezes humanas. A carne de porcos criados nessas condições chega clandestinamente ao consumidor, sem passar pela fiscalização sanitária. Se estiver infectada, leva o parasita diretamente à mesa das pessoas. Graças à parceria com a FAPESP e o Biolab-Mérieux, que financiaram meio a meio o projeto, num valor de cerca de R$ 80 mil, o novo ELISA para cisticerco já foi testado, com sucesso, em pacientes tratados pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. “Até agora, só dispomos de um teste importado e caro, o Imunoblot, nem sempre disponível”, comenta a professora Adelaide.
Havia mais um complicador: para obter o reagente purificado, seria necessário um número bem maior de cisticercos. Até então, eles eram retirados diretamente da carne de porco contaminada, um processo lento, de pouco rendimento e de muito risco. “Resolvemos o problema cultivando outro parasita, a Taenia crassiceps, similar à T. solium, com a qual tem antígenos comuns”, lembra a professora Adelaide. Esses cisticercos, inoculados em camundongos, multiplicam-se rapidamente no peritônio do animal. Em 90 dias, obtém-se uma quantidade 100 vezes maior que a resultante do trabalho com a carne de porco. O reagente purificado é obtido por métodos imunoquímicos. O parasita, em extrato bruto, passa por dois processos: a cromatografia de afinidade com lectinas e a eletroforese em gel de acrilamida. No fim, obtêm-se frações purificadas e específicas do cisticerco. Com elas, fica aberto o caminho para o teste imunoenzimático, um kit composto por reagentes, soluções e pelo antígeno específico para cisticercose humana. Para que o teste possa funcionar satisfatoriamente em condições de ambulatório, ainda é preciso aperfeiçoar alguns detalhes, como as diluições ideais e o tempo de incubação. Completado esse trabalho, o Biolab-Mérieux pretende começar a produzir o kit em escala comercial. Isso deverá ocorrer ainda dentro de um ano.
Fonte:
http://www.fapesp.br/inovtec41.htm
http://cejota.hypermart.net/art_b002.htm
acesso em fevereiro de 2002