Indústria Bélica

Sonar Detector de Submarinos

Marcello Damy se formou em física em 1936, na primeira turma do Curso de Física da USP – onde, anos mais tarde, também obteve seu doutorado. Em 1938, com bolsa de estudos do Conselho Britânico, seguiu para fazer pós-graduação na Universidade de Cambridge, Inglaterra, onde trabalhou com os prêmios Nobel de Física John Cockroft e William L. Bragg. Marcelo Damy estagiou em Cambridge, na Inglaterra, como físico, tendo desenvolvido um circuito multivibrador capaz de medir tempos da ordem de 10ns, cerca de 10 vezes mais rápido que os equipamentos equivalentes, e útil na verificação de mésons nos chuveiros de raios cósmicos. Os primeiros radares ingleses, construídos por W. Lewis e Watson Watt usavam esse sistema para medir intervalo de tempo. Era um método primitivo, hoje totalmente superado. Mas como era novo e importante na época, Lewis convidou Marcelo para participar do esforço de guerra inglês e entrou em contato com a embaixada. O ministro do exterior , Oswaldo Aranha, que era primo-irmão do pai de Marcelo, disse: “Se esse sujeito serve para a Inglaterra, vai ser mais útil para o Brasil”, foi quando Marcelo retornou ao Brasil, no início da guerra.


O Exército e a Marinha tinham problemas extremamente sérios. Nosso equipamento militar era, na sua quase totalidade, de origem germânica, inglesa ou francesa. A USP estabeleceu contato com o antigo Departamento de rádio da Marinha, através do comandante Reis que havia procurado a Universidade de São Paulo, cujo reitor era o professor Jorge Americano. Logo que o Brasil entrou na guerra, Jorge Americano instituiu na USP os Fundos Universitários de Pesquisa, que deram origem à Fapesp. Ele conseguia recursos das indústrias para custear pesquisas de interesse do Brasil. A Marinha tinha problemas fundamentais na época: nossos navios, inclusive os de guerra, navegavam completamente cegos, sem qualquer método de detecção de submarinos e de navios de superfície. Então, o Brasil ficou sem poder navegar. E ficar sem navegar em 1942 significava não poder trazer açúcar do Norte e não transportar trigo e demais mercadorias para outras regiões do país.Com o início da guerra a Marinha perdeu uma parte de sua Marinha Mercante. Os navios brasileiros já não viajavam para o Norte e para o sul porque os submarinos alemães estavam por ali. Quando a Marinha precisou de aparelhos para localizar submarinos fez um apelo ao meio científico e técnico brasileiro. Ninguém aceitou. Foi quando o Departamento de Comunicações da Marinha procurou Marcelo Damy e o prof. Pompéia que tinha vindo dos EUA, onde trabalhou num aparelho capaz de contar até 105 impulsos elétricos por segundo e de medir intervalos de tempo com cinco casas decimais.

Marcelo Damy relata: “Ouvimos as explicações da Marinha e dissemos que nenhum de nós jamais havia visto de perto um submarino e muito menos um aparelho de detecção de submarino. “Fazemos ciência pura – dissemos – trabalhamos em raios cósmicos”. O que podemos prometer é que vamos estudar”: o que aprendemos na ciência pura é que nela parte-se da existência de um fenômeno e o físico procura um método de pôr esse fenômeno em evidência, de descobri-lo e estudar suas propriedades. A vantagem que o físico leva sobre o engenheiro é que este trabalha na física aplicada, nos problemas físicos já de âmbito aplicativo. Fomos procurar a bibliografia existente depois da Primeira Guerra Mundial, pois, nessa época, já existiam equipamentos precários de detecção de submarinos e navios de superfície. Nossas primeiras tentativas foram baseadas na construção de um microfone que apanhasse os ruídos produzidos pela rotação das hélices na água. Para produzir sons na água e detectá-los à distância, precisávamos de um laboratório. O professor Jorge Americano, que era um homem de sete instrumentos, decidiu projetar e construir para nós um laboratório na represa de Santo Amaro.”

Marcelo Damy relata: “Quando recebemos essa incumbência da Marinha deixamos claro à pessoa responsável, o Almirante Guilherme Bastos Pereira das Neves, que não tínhamos experiência com problemas navais e com a detecção de submarinos, pois não passávamos de ‘filósofos’ trabalhando com raios cósmicos. Mas para poder estudar os problemas de ciência básica éramos obrigados a empregar metodologias não convencionais afim de demonstrar a existência de certos fenômenos. Portanto, estávamos acostumados a enfrentar o desconhecido, e a tratar com ele. Acreditávamos assim que, pelo menos do ponto de vista psicológico, tínhamos a atitude adequada para examinar o problema. Além disso, pensávamos que ele não seria excessivamente difícil. Há um número razoável de publicações sobre as técnicas utilizadas para a detecção de submarinos na Primeira Guerra Mundial. Nosso problema não nos obrigava a descobrir novas leis da natureza, mas a redescobrir, por assim dizer, as condições em que um fluxo de ultrassom podia ser emitido e recebido de volta, e como medir o intervalo de tempo transcorrido para identificar a posição do submarino.”

Para o exército Paulus Pompéia desenvolveu um instrumento que podia medir a velocidade inicial dos projéteis com uma precisão de 0,4 por cento.45 Ele e Damy desenvolveram também rádios portáteis para os jipes e caminhões do exército. Os projetos mais interessantes, porém, eram os da Marinha. O primeiro produto foi um instrumento que podia ouvir o som dos hélices de um submarino. Mais tarde desenvolveram um equipamento para enviar um feixe de ultrassom, mas não conseguiram captar o seu eco. Depois conseguiram chegar a um sonar completo, que na versão final tinha um transmissor com 400 cilindros de níquel soldados em uma base de aço que precisava girar continuamente. O eco era captado por um detector de cristal. Um problema especial, que foi resolvido pelo departamento de química da Faculdade de Filosofia, era a fabricação de cristais de quartzo do tamanho adequado. Damy e Pompéia desenvolveram um termostato especial, eu funcionava com a dilatação da gasolina, para controlar a temperatura do arrefecimento do cristal.

Os experimentos eram feitos no laboratório de Física da faculdade de Filosofia, numa antiga residência na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, os experimentos de propagação de sons eram feitos numa banheira. Os pesquisadores fizeram um gerador de ruído acústico baseado no fenômeno de cavitação, o que entusiasmou o pessoal da Marinha, que levou o presidente Getúlio Vargas para visitar o laboratório. Depois, foi montado um laboratório flutuante na represa de Santo Amaro. Jorge Americano construiu e forneceu dois barcos em cima dos quais montou um laboratório com um gerado elétrico com um buraco no centro, por onde os sonares ficavam em contato com a água. Neles, os pesquisadores se afastavam um quilômetro, colocando barquinhos de brinquedos na água. Eram brinquedos que funcionavam com velas comuns, nas quais se colocava um pouco de álcool. A água fervia e eles saíam propelidos por jatos de vapor, fazendo barulho com a cavitação produzida por uma hélice. Os pesquisadores conseguiram detectar os ruídos dos barquinhos a dois quilômetros com os aparelhos então construídos.

Depois descobrimos que no fim da Primeira Guerra o grande físico francês Langevin havia desenvolvido um método de localização por ultrassom. A detecção era feita com cristais de quartzo, lançando mão do efeito piezelétrico, descoberto por Pierre Curie. Após essa época foram descobertos outros métodos de se produzir a piezeletricidade, por meio de cristais artificiais, os cristais de sal de Rochelle. Para construir um detector de sal de Rochelle tivemos de produzir os cristais em laboratório, cortá-los no ângulo certo, revesti-los e colocá-los de tal forma que resistissem às ondas de pressão no navio devido às bombas de profundidade. Essas ondas eram tão fortes que um aparelho frágil seria destruído. Fizemos esses detectores com o auxílio de colegas da Química e Geologia, que nos ajudaram sobre a produção e a orientação dos cristais. Depois, acabamos criando os cristais, cortando e revestindo no próprio laboratório de Física. Além disso necessitávamos de amplificadores eletrônicos para corrente alternada de alta frequência. Outro problema para a época era o da construção de geradores para corrente alternada, porém, este foi solucionado por uma indústria pequena, mas de excelente qualidade, de um engenheiro húngaro chamado Kessler.

 

Nasceu, assim, o detector de submarinos, que funcionava com cristais de sal de Rochelle e com tubos de níquel colocados abaixo da quilha do navio. Aí surgiram outros problemas. Era necessário furar o casco do navio, ter um dispositivo telescópico para baixar esse aparelho em profundidade. Era preciso então usar materiais que resistissem à pressão da água e não sofressem corrosão. Surgiu, assim, a necessidade de se fazer aço inoxidável. Pela primeira vez o aço inoxidável foi feito no Brasil, pelo IPT. Como não se fazia na época nada em metalurgia de níquel no Brasil, procuramos o apoio da Laminação Nacional de Metais. Eles laminaram o níquel e, depois, com o auxílio de uma firma de fabricação de móveis de aço, conseguimos fazer o tubo. Essa empresa de móveis de aço era dirigida pelo engenheiro Aldo Magnelli, que havia trabalhado em Roma em Física experimental, sob a orientação de Enrico Fermi – o criador da primeira reação em cadeia com o urânio, em Chicago.

Desenvolver esses equipamentos, na época completamente desconhecidos no Brasil, exigiu que uma série de problemas técnicos fossem resolvidos, mediante a incorporação ao processo de novos especialistas e instituições — tais como o Liceu de Artes e Ofícios, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas e o Instituto de Eletrotécnica, todos em São Paulo. Oitenta sonares foram construídos para a Marinha, com peças fornecidas por vinte e duas indústrias, que ignoravam o seu destino final. Os sonares eram montados no edifício da Faculdade de Filosofia, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, por Damy, Pompéia e dezoito técnicos especializados. Depois da guerra a Marinha terminou sua cooperação com os físicos da Universidade de São Paulo, que retornaram a seus trabalhos acadêmicos e científicos. Mas o know-how tecnológico desenvolvido pelo grupo tinha sido transmitido a outras instituições e empresas, que começaram a fabricar equipamentos elétricos e outros produtos sofisticados para o mercado consumidor do pós-guerra. À medida que a economia do país se abria, porém, essas indústrias, com poucas exceções, foram inviabilizadas pelas importações, ou adquiridas por empresas estrangeiras que se instalavam no país.

No início todos os comboios americanos e ingleses tinham que acompanhar os navios brasileiros até a Argentina e voltar. Quando o Brasil passou a ter esses dispositivos de segurança, os comboios americanos deixavam os navios mercantes em Natal. O comboio até a Argentina já era feito pela Marinha brasileira. Foi um auxílio substancial, porque os aliados passaram a contar com maior disponibilidade de destroieres e torpedeiros para a linha de frente. O trabalho desenvolvido no Laboratório de Física da Faculdade de Filosofia do Estado de São Paulo, por Marcelo Damy e Paulus Pompeia, na construção de cristais de Rochelle, foi repassado para a empresa paulista Cacique S.A (Inbelsa), para fabricação de ecobatímetros. Depois da guerra, a tecnologia de fabricação passou para a indústria, que pode assim fabricar as cápsulas de cristal dos antigos toca-discos.

 

Fonte: http://www.usp.br/iea/revista/revista22/damy.html

Acesso em junho de 2002

http://www.aben.com.br/

Acesso em dezembro de 2002

http://www.schwartzman.org.br/simon/spacept/pdf/capit6.pdf

http://www.abc.org.br/Gina/curriculo.asp?Consulta=msantos&etapa=3&lingua=P

http://ipen.br/ipen_p/sobre-ipen/historico/historico-superintendentes.html

Acesso em agosto de 2007

Cientistas do Brasil, SBPC, 1998, página 524, 636

História da Indústria de Telecomunicações no Brasil, Henry Barros, 1989, páginas 24 e 108