Nestes dias de globalização, em que a maioria dos projetos de automóveis vem do exterior, parece inacreditável a capacidade de alguns brasileiros de criar e produzir, já nos primeiros anos de nossa indústria, modelos esporte tão bons quanto muitos importados da época. Esse foi o caso do Brasinca 4200 GT ou Uirapuru, que teve particularidades como carroceria de aço feita à mão e testes de aerodinâmica em túnel de vento.
Rigoberto Soler Gisbert, um espanhol radicado no Brasil, ingressou no ramo automobilístico na Vemag, fabricante da linha DKW, onde chegou a projetar uma perua utilitária que ficou na fase de protótipo. Mais tarde esteve na Willys-Overland, envolvido no desenvolvimento de um carro-esporte maior que o Interlagos, com a mecânica de seis cilindros e 2,6 litros do Aero-Willys. Conhecido como Capeta, o carro chegou a ser apresentado no IV Salão do Automóvel, em 1964, mas nunca entrou em produção.
Depois da Willys, Soler trabalhou na Brasinca S.A. – Ferramentas, Carrocerias e Veículos, empresa fundada em 1949 que fabricava carrocerias para caminhões e ônibus em São Caetano do Sul, SP. Da Brasinca havia saído a cabine do primeiro caminhão brasileiro, o FNM (“Fenemê”). Mas ela nunca havia feito automóveis. Assim, foi bem recebida a idéia de seu novo chefe do departamento de Engenharia de Produtos — Soler — de projetar e produzir um cupê de grande cilindrada e alto desempenho, algo ainda inédito na indústria nacional, já que o Interlagos tinha um pequeno motor de 845 cm3. O projeto, denominado X-4200, logo ficaria conhecido como Uirapuru, nome de um pássaro silvestre da Amazônia.Soler não partiu de um chassi já conhecido, como o fariam dezenas de fabricantes de carros fora-de-série nas décadas seguintes. O Uirapuru nascia a partir de um monobloco com chassi de vigas ocas, tipo caixa, de chapas de aço finas e resistentes — tanto que já previam a possibilidade de uma versão conversível. Embora na época já se usasse plástico reforçado com fibra-de-vidro em carrocerias especiais (saiba mais sobre a pioneira Glaspac), incluindo a do próprio Interlagos, Soler optou por chapas de aço, moldadas à mão sobre gabaritos em vez de prensadas.
O resultado foi apresentado no mesmo IV Salão, em 1964: uma carroceria moderna e elegante, com a cabine recuada e o longo capô típicos dos carros-esporte. A frente baixa e agressiva exibia dois faróis redondos e as luzes de direção nos extremos, além de uma tomada de ar no centro do capô. Atrás das rodas dianteiras vinham saídas de ar, aplicadas a um recesso que tinha continuidade como um vinco por toda a lateral do veículo.
As portas exibiam um formato inovador, avançando alguns centímetros sobre a capota, o que facilitava o acesso ao baixo automóvel — algo que só apareceria duas décadas depois no Uno, em menor grau. Curiosa também era a abertura do capô do protótipo: elevava-se por igual, sustentado nos quatro cantos. Nos modelos de série, porém, seria adotada a abertura convencional para a frente. O retrovisor único ficava bem adiante do pára-brisa. A traseira, em formato fastback e com pequenas lanternas, tinha um vidro bastante envolvente e abaixo dele uma mínima tampa do porta-malas — modo de dizer, já que o grande estepe o ocupava em boa parte. No interior, um largo console central ladeados por bancos reclináveis, painel completo com sete instrumentos (incluindo manômetro de óleo, voltímetro e conta-giros), revestido em madeira jacarandá, e volante esportivo Walrod de três raios. Atrás dos bancos havia (pouco) espaço para bagagem. Algumas limitações incomodavam, como as ausências de sistema de ventilação, cinzeiro e acendedor de cigarros.
E a mecânica? Não havia um automóvel nacional com potência e torque adequados aos objetivos do carro. A solução foi usar o motor de seis cilindros em linha e 4.271 cm3 dos picapes e caminhões Chevrolet Brasil e da perua Amazona, com 142 cv de potência bruta. Mantendo até mesmo a taxa de compressão original, de 7,3:1, Soler apenas substituiu o carburador único por três SU H4, iguais aos do Jaguar britânico, passando a 155 cv brutos a 4.000 rpm. O motor, antigo e dotado de somente quatro mancais, não estava à altura do temperamento do 4200 GT. Um pouco mais e chegaria o seis-cilindros Chevrolet de sete mancais, com o Opala 3800. O torque, como se esperaria de um motor de utilitários, era elevado (32,7 m.kgf brutos a 3.200 rpm) e disponível desde baixas rotações. Oferecido como opcional, o comando de válvulas bravo C4, da americana Iskenderian, aumentava a potência bruta para 166 cv sem grande prejuízo ao torque. A caixa de câmbio Clark de três marchas, com embreagem de comando hidráulico, e o eixo traseiro/diferencial eram nacionais.
Denominado Brasinca 4200 GT, o esportivo chegava ao salão com o mérito de ter atingido, pouco antes, 200 km/h em testes no Autódromo de Interlagos, hoje José Carlos Pace, em São Paulo, SP. A primeira marcha chegava a 100 km/h e a segunda a 150, mesmo sem recorrer ao diferencial mais longo disponível como opção. Contudo, ao ser apresentado ainda faltavam inúmeros acertos para que pudesse chegar ao mercado.
Os dois protótipos existentes passaram então por uma bateria de testes, incluindo um jamais feito no Brasil com automóveis: análises de aerodinâmica no túnel de vento do Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o ITA, em São José dos Campos, SP. O teste, feito com um modelo em escala 1:4, apontou a necessidade de alterações na altura e posição dos pára-choques e de um alongamento de 30 cm no cano de escapamento, para fugir da zona de turbulência que se formava atrás do carro e não haver risco de entrada de gases no interior do veículo. A produção em pequena série, sob encomenda, começava em março de 1965. Publicação da época conta que o primeiro comprador, um gaúcho da cidade de Quaraí, próxima à uruguaia Artigas, aguardou para retirar o carro na fábrica logo que ele saísse da linha de produção. Pagou adiantado, dispensou qualquer tipo de garantia, pediu um pára-brisa de reserva e desapareceu. Depois disso, apenas enviou um telegrama dizendo que o Brasinca era ótimo — e nunca mais respondeu às insistentes cartas da empresa.
Apresentado pela publicidade como o único Grã-Turismo fabricado no Brasil, um “puro-sangue potente, elegante e de alta performance”, o 4200 GT acelerava de 0 a 100 km/h em 10,4 s, conforme teste de publicação da época. Atingiu 50 unidades fabricadas em um ano, mas a Brasinca entendia que uma escala tão reduzida não era viável para o tipo de empresa, optando por transferir os direitos de produção a terceiros. Não foi difícil encontrar a empresa ideal: a STV, Sociedade Técnica de Veículos, que vinha projetando automóveis mas ainda não os fabricava. Um de seus diretores era ninguém menos que Rigoberto Soler, o criador do 4200 GT; os outros eram Walter Hahn Jr. e Pedro dos Reis Andrade. Sua primeira providência foi resgatar o nome de projeto — Uirapuru — com o qual o carro havia ficado conhecido numa época em que os brasileiros se orgulhavam mais das criações nacionais. Ao assumir a produção a STV apresentou um conversível, no salão de 1966, já com os novos faróis retangulares. Mas apenas três foram fabricados.
Carros fora-de-série brasileiros inspirados em esportivos estrangeiros, ou mesmo copiados deles, existem às dezenas. Mas a reprodução de elementos de estilo de um legítimo nacional — o Uirapuru/4200 GT — por uma empresa européia é sempre motivo de surpresa. Pois é o que muitos acreditam ter ocorrido, sem licença ou autorização, com a inglesa Jensen e seus cupês FF e Interceptor.
Basta comparar suas fotos às do brasileiro para perceber a clara inspiração, tanto no conjunto quanto em detalhes como a protuberância central do capô, as janelas laterais e o vidro traseiro. O Brasinca estava em nosso salão em 1964 e o Jensen seria apresentado apenas dois anos depois — tempo o bastante para dar uma espiada no desenho alheio…
Fonte:
http://www.uol.com.br/bestcars/classicos/brasinca-1.htm
acesso em março de 2002
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