O carro encosta no posto mas, em vez de ser abastecido na bomba, simplesmente tem o tanque vazio substituído por um cheio, como se se estivesse trocando um botijão de gás. O tanque não contém combustíveis tradicionais como gasolina, álcool ou diesel, mas hidrogênio. Realiza-se, assim, o sonho que até há pouco tempo era considerado inatingível tanto para as montadoras de carros quanto para os mais radicais defensores do meio ambiente. Não sem razão. Afinal, o hidrogênio é um elemento inesgotável, ao contrário do petróleo. E, de sua queima, resulta apenas um inofensivo vapor de água. Então, adeus poluição. O vapor, por sua vez, pode realimentar, ele mesmo, o motor. Pois a água não contém hidrogênio, o H da conhecida fórmula H2O? Animados por tantas vantagens, vários fabricantes já puseram a rodar diversos protótipos de veículos movidos a hidrogênio.
O uso prático desse combustível, porém, tem esbarrado em dois grandes obstáculos. Primeiro, o risco de tratar-se de um gás altamente inflamável. Tanto que dois dos maiores acidentes da história dos transportes envolveram seu uso. Em 1937, o famoso dirigível alemão Zeppelin incendiou-se em poucos segundos no céu de Nova York com hidrogênio gasoso. Meio século mais tarde, em 1986, o ônibus espacial Challenger explodiu depois de um vazamento num dos tanques de hidrogênio líquido. Outra desvantagem é que são necessários grandes reservatórios para armazenar o hidrogênio, o que tem tornado antieconômica a produção de carros em série. Assim, um formidável desafio tem-se apresentado à indústria: como armazenar o produto de forma segura e viável para seu uso em larga escala? A resposta começa a ser viabilizada no Laboratório de Hidrogênio da Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ). Os engenheiros da Coppe estão desenvolvendo o chamado “tanque maciço”, um sistema para armazenamento seguro de grandes quantidades da substância. Caminha-se na direção de um tanque do tamanho de um butijão de gás, pesando cerca de 200 kg. O tanque conterá 8 kg de combustível, suficientes para fazer o carro rodar por 400 quilômetros. O projeto, que envolve o estudo e a manipulação de átomos de hidrogênio e de metais para revestir o futuro tanque de combustível, caminha em ritmo acelerado. “Este é o grande gargalo que esperamos superar”, diz o coordenador da pesquisa e chefe do laboratório, o engenheiro Paulo Emílio de Miranda.
O objetivo da equipe consiste em acomodar o hidrogênio no metal para depois resgatá-lo na forma gasosa. Para isso, o produto precisa ser manipulado da seguinte maneira: primeiro é preciso quebrar a sua molécula na forma gasosa (H2) e obter dois átomos do elemento químico. A seguir, é possível roubar os elétrons desses átomos para se obter íons e prótons. Como são muito pequenas, essas estruturas podem ser “encaixadas” dentro da estrutura do metal de um tanque maciço. Comparado ao átomo, o próton é muito pequeno e menor ainda que a molécula de hidrogênio. “Nessa forma, ele não é explosivo”, explica Miranda.
Paralelamente à manipulação da molécula de hidrogênio, a equipe da Coppe estuda os tipos de metais capazes de acomodar grandes quantidades do produto. Na forma sólida, os metais são cristalinos, isto é, apresentam estrutura atômica muito organizada, que se repete com poucas falhas em todas as direções do material. “Nos metais cristalinos, sobram poucos locais onde os átomos estranhos, como o hidrogênio, possam acomodar-se. Assim, para encaixá-los dentro do tanque, precisamos antes desorganizar a estrutura atômica do metal”, explica Miranda. A grosso modo, é como se o interior do tanque fosse constituído por uma esponja de metal, com microporos dentro dos quais estará alojado o combustível. Essa desorganização é conseguida através de um resfriamento rápido equivalente a 1 milhão de graus Celsius por segundo, que transforma os metais em líquidos, estado físico em que são naturalmente amorfos.
Para “encher” o tanque, existem duas formas sendo pesquisadas pela Coppe. Uma é mergulhá-lo num recipiente com hidrogênio gasoso a altas pressões e temperaturas. A segunda alternativa é depositar-se o tanque numa célula eletrolítica uma solução aquosa na qual se instala uma corrente elétrica, que separa os átomos de hidrogênio e oxigênio da água. O combustível pode ser absorvido como um átomo isolado, na forma de prótons, quando perde provisoriamente seu elétron, ou como o composto hidreto metálico. Neste composto ocorre a associação dos átomos do metal original e do hidrogênio. “Em nenhuma das três formas há perigo de o tanque pegar fogo ou explodir, pois nesses casos não temos a substância na forma líquida ou gasosa”, garante Miranda.
Mas como ter o hidrogênio de volta, depois de embuti-lo na chapa metálica do tanque, para movimentar o motor do carro? A equipe da Coppe já sabe que basta aquecer a liga metálica do tanque para liberar o produto. Depois de aquecido, caminha até a superfície do metal e recupera seu elétron perdido, formando mais uma vez a molécula de gás, pela combinação de dois átomos de hidrogênio. Nesse momento estará pronto para produzir a energia elétrica que vai alimentar o motor. Em ensaios, a equipe da Coppe já conseguiu embutir o combustível em metais e resgatá-lo novamente na forma gasosa. Daí, ele pode seguir para as chamadas células ou pilhas , onde o hidrogênio mistura-se a átomos de oxigênio, formando vapor de água e gerando corrente elétrica que faz rodar o motor do carro. “Já identificamos algumas ligas metálicas que têm a capacidade de absorver a substância”, explica Miranda. Mas esse é um segredo bem guardado pela equipe da Coppe, devido aos cuidados com a patente do processo.
As pesquisas na Coppe podem significar a solução final na busca de um carro a hidrogênio seguro e viável para o consumidor. Até o momento, todos os projetos apresentaram falhas. Num protótipo americano, a substância é mantida numa espécie de congelador a 259 graus Celsius negativos para reduzir seu volume na forma líquida. É um sistema caro e pesado. Já nos ônibus experimentais da Daimler-Chrysler que rodam em Vancouver, no Canadá, o risco é o grande reservatório colocado no alto do veículo. A Toyota tem uma van, a FCEV, e a Daimler-Chrysler, o Necar 4, adaptado num Mercedes Classe A, rodando com hidrogênio produzido a partir de metanol. Outro protótipo é produzido pela Renault e roda experimentalmente pelas ruas de Paris há alguns anos. É a perua Fever, onde o combustível, sob a forma líquida, fica guardado num sistema de armazenagem e circulação que ocupa quase toda a parte traseira do veículo, inclusive os bancos. O tanque tem capacidade para oito quilos, e o carro tem autonomia para rodar até 500 quilômetros sem reabastecer. O grande problema do modelo além do uso da perigosa substância em estado líquido — é a exagerada dimensão do tanque de armazenamento. No futuro, o tanque desenvolvido no Brasil pode equipar o Fever.
O desenvolvimento do tanque brasileiro está sendo feito em parceria com a Renault, que somente este ano investiu 1 milhão de reais na Coppe. O Laboratório de Hidrogênio foi escolhido por ser um dos mais modernos do mundo e por manter um produtivo e reconhecido trabalho de pesquisas sobre associação do hidrogênio com outros materiais. Nos últimos seis anos, a equipe do laboratório publicou cerca de 30 trabalhos em revistas científicas do exterior.
Para o sociólogo inglês John Urry, o carro como símbolo de status pode estar com os dias contados. Eles poderiam ser desprivatizados num cenário previsto por ele para 2010, a partir de “smart cards” que seriam vendidos para que motoristas utilizassem veículos de propriedade de grandes empresas. Seriam movidos a pilhas combustíveis de hidrogênio e produzidos em fibra de carbono. A convergência de tecnologias de informação (tipo internet) e de movimento nesses carros inteligentes poderia “restaurar alguma civilidade aos espaços públicos destruída pelos atuais fluxos de tráfego e pelos padrões espaciais de fragmentação e segregação gerados pela auto-mobilidade”, sugere.
O engenheiro Luiz Alberto da Cunha Bustamante, do Laboratório de Hidrogênio da Coppe-UFRJ, que mantém um convênio de pesquisas com a Renault, concorda em parte com as previsões de Urry. “A tendência mundial da indústria é parar de fornecer o produto, mas disponibilizar o serviço. As empresas deixariam de vender os carros para comercializar os serviços que ele oferece”, prevê. “O carro do futuro vai gerar sua própria energia elétrica em um dispositivo chamado pilha combustível. Esse dispositivo combina o hidrogênio com o oxigênio do ar e gera corrente elétrica para acionar o motor elétrico do veículo”, explicou o cientista da UFRJ, Luiz Alberto Bustamante. Ele adianta que o lançamento das pilhas combustíveis de hidrogênio acontecerá entre 2004 e 2005. Estas serão incorporadas ao Mercedes Classe A, numa manobra que se avalia ser mais publicitária do que prática. Pilhas combustíveis são dispositivos que convertem energia química em eletricidade por meio de processos modificados de oxidação. Apresenta como subprodutos calor, água e dióxido de carbono, dependendo do combustível utilizado no processo. “Os preços são proibitivos ainda. Só a pilha, em valores atuais, custa cerca de US$200 mil”, revela. “Acredito que só em 2010 teremos um tanque sólido de hidrogênio. Com esse horizonte que os fabricantes estão trabalhando” , diz John Urry.
Fonte:
http://galileu.globo.com/edic/99/tec_carro1.htm
http://www.labh2.coppe.ufrj.br/
acesso em março de 2002
http://www.transito.hpg.ig.com.br/antrocar.htm
acesso em outubro de 2002
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