Fármacos

“Anti-Hipertensivo”

A maioria deles nem desconfia, mas os hipertensos devem muito à jararaca. Ou melhor, a um expoente da Farmacologia brasileira, o médico carioca Maurício Rocha e Silva (1910-1983). Em 1949, ele descobriu que as enzimas do veneno da jararaca agem sobre as proteínas do sangue de modo a liberar uma substância chamada bradicinina (bradys = lento, kinesis = movimento), que hoje é largamente utilizada em medicamentos para o controle da hipertensão. O achado rende atualmente algo em torno de US$ 10 bilhões à indústria farmacêutica. Geraldo Biasoto lamenta: “O Captopril, que foi um dos produtos que mais vendeu no mundo, é um produto inventado por um brasileiro, que acabou não conseguindo patentear e a patente acabou sendo do laboratório Bristol Myers-Squibb. Mas foi inventado por um brasileiro”. A lei de propriedade industrial da época vetava a patenteabilidade de fármacos. 

Resultaram da pesquisa do veneno da serpente brasileira Bothrops jararaca, descobertas fundamentais como a bradicinina por Maurício Rocha e Silva e depois os Peptídeos Potenciadores de Bradicinina (BPPs) descobertos por Sérgio Ferreira, que serviu de protótipo molecular para o desenvolvimento de captropil pela Squibb, uma droga anti-hipertensiva que domina o mercado internacional. Este é um exemplo clássico de uma pesquisa biomédica básica executada aqui no Brasil, mas usada pela indústria multinacional para a produção de um fármaco de grande impacto. 

Mas, há meio século, não faltou quem jogasse pedras em Rocha e Silva. Um professor da Faculdade de Medicina da USP convocou a comunidade científica para provar que a bradicinina era pura ficção. O homem se engasgou ao enfrentar no debate o próprio Rocha e Silva que se defendeu: “O senhor pensou errado, realizou a experiência errada e concluiu o que bem entendeu“. Rocha e Silva era um dos candidatos a vaga de professor catedrático de farmacologia da faculdade de Medicina da USP, e o professor Jaime Pereira, que era o titular, queria passar a cátedra para uma pessoa de sua família. Segundo Wilson Beraldo:“Talvez por isso ele tenha contestado a descoberta, afirmando na Sociedade de Biologia de São Paulo que a bradicinina não existia, que era uma mistura de histamina com ATP” Mas ele não foi o único a contestar, apenas a partir de 1955, quando os pesquisadores ingleses Hilton e Lewis estudavam o papel da bradicinina na vasodilatação da glândula salivar, sua existência passou a ser aceita no Brasil e no exterior e não se questionou mais a origem da descoberta. 

Nascido a 19 de setembro de 1910, de temperamento forte e idealista, Maurício Oscar da Rocha e Silva estudou no Colégio Pedro II e se formou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, na Urca, onde já reclamava da superlotação das salas de aula (entre 300 e 400 alunos em cada uma). Em 1933, migrou para São Paulo onde se destacaria como pesquisador meticuloso e exigente do Instituto Biológico a partir de 1937. Em 1939 recebeu uma bolsa da Fundação Guggenheim em trabalho sobre liberação da histamina. Sua idéia era imitar alguns dos efeitos dos venenos ofídicos, conforme descrição feita por Feldberg e Kellaway, na Austrália. Passou temporadas nos Estados Unidos (onde sintetizou cinco compostos de histamina com aminoácidos e dedicou-se ao isolamento e às propriedades de enzimas proteolíticas) e na Inglaterra (trabalhando com Shild percebeu a importânica da aplicação da estatística em bioensaios, para resolver problemas insolúveis por meios puramente bioquímicos) antes de fundar a Sociedade Para o Progresso da Ciência, em 1948. 

O talento de Rocha e Silva para imaginar problemas científicos e atacá-los no laboratório impressionou de tal modo o pesquisador Charles Best – descobridor da insulina em 1921, juntamente com Frederick Banting – que este o convidou para seu assistente na Universidade de Toronto. Embora lisonjeado com a proposta, Rocha e Silva respondeu-lhe que os brasileiros raramente emigravam; “Deixar o país para melhorar a situação financeira é de certo modo uma traição a nossos amigos e alunos”, refletiria ele anos mais tarde. Rocha e Silva tem mais de 300 trabalhos publicados em revistas como Nature e Science, recebeu o Prêmio Nacional de Ciência e Tecnologia do CNPq em 1982 e, em 1967, foi agraciado com o prêmio Moinho Santista de Ciências Biológicas, a mais alta condecoração conferida a um cientista no Brasil. Em 1981 recebeu o prêmio de ciências Bernardo Houssay, do Conselho Interamericano de Educação, Ciência e Cultura da Organização dos Estados Americanos“por sua extraordinária contribuição científica” . Morreu em 1983, aos 73 anos, ao sofrer o terceiro infarto. No campo da filosofia da ciência, em que publicou livros como “Lógica da invenção”, costumava defender teses polêmicas, como a de que a criação intelectual é mais produto da intuição que dos princípios da lógica e da razão. 

A primeira comunicação sobre a descoberta, assinada por Rocha e Silva, Gastão rosenfeld e Wilson Beraldo, saiu em 1949, no número inaugural da revista Ciência e Cultura. Em 1950 foi publicado o trabalho completo no American Journal of Physiology. A bradicinina foi bem aceita no exterior no início dos anos 50, mas não faltou quem afirmasse, sem provas cabais, que a nova substância havia sido descoberta antes na Alemanha. Em um simpósio sobre polipeptídeos ativos, realizado em Londres, em 1959, o depoimento do respeitado farmacologista J.H.Gaddum funcionaria como uma pá de cal sobre qualquer vestígio de dúvida: “A bradicinina foi descrita por Rocha e Silva em 1948, e provou ser um potente estímulo à pesquisa”. Os estudos da nova substância progrediram em ritmo exponencial no laboratório de Rocha e Silva, no Instituto Biológico. O grupo, que contava com Beraldo e Sylvia Andrade, amplia-se com a colaboração fundamental de Carlos Ribeiro Diniz e Eline Prado, que por meio de métodos cromatográficos, visando à purificação da bradicinina, conseguiram aumentar sua atividade em cerca de mil vezes. Com a utilização, por Sylvia Andrade, de uma resina de troca de íons, obteve-se em 1955, um material bastante puro e ativo. Os resultados destes trabalhos seriam publicados no Biochemical Journal, em 1956. 

Por suas características químicas, a bradicinina é destruída rapidamente demais no organismo para exercer ação medicamentosa eficaz. Por isso, foram desenvolvidos agentes que alongassem sua atividade. Na década de 1970, surgiram produtos que agem impedindo que a bradicinina produzida pelo organismo seja inativada. O captopril, cujo nome comercial é Capotem, foi o primeiro medicamento anti-hipertensivo desenvolvido a base de bradicinina e é usado ainda hoje com eficiência. 

O princípio ativo atuava inibindo a cininase II, enzima que catalisa a degradação e a inativação da bradicinina. Em 1968, Bakhle observou que os peptídeos contidos no princípio ativo também inibiam a enzima conversora responsável pela formação da angiotensina II. Logo em seguida, Erdös estabeleceu que a cininase II e a enzima conversora da angiotensina eram, na realidade, a mesma enzima, a dipeptidil carboxipeptidase. Ficou assim demonstrado que uma única enzima catalisava tanto a síntese de angiotensina II, a mais potente substância pressora conhecida, quanto a destruição da bradicinina, o mais potente vasodilatador. Em 1977, Cushman e Ondetti, do Squibb Institute for Medical Research, sintetizaram o captopril (synthetic angiotensin converting enzyme inhibitor), atualmente utilizado no tratamento da hipertensão arterial e da insuficiência cardíaca. 

Fonte: www.medicina.ufmg.br/cememor/beraldolosr.htm 
http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/ciencia/ciencia20.htm 
http://www.comciencia.br/reportagens/farmacos/farma15.htm
http://www.uol.com.br/cienciahoje/perfis/rocha/rocha1.htm
http://www.comciencia.br/entrevistas/biasoto.htm
acesso em dezembro de 2001
Patentes: Onde o Brasil perde, Sindicato da indústria de Artefatos de papel, Papelão e Cortiça no Estado de São Paulo, dez/93, pg 13 
Cientistas do Brasil, SBP, 1998, página 449, 717 
Crônicas de Sucesso, Ciência e Tecnologia no Brasil, Ed. Ciência Hoje, pag. 12 
REVISTA ISTO É DATA: 24/09/03 ON-LINE “Riqueza ameaçada”